12º Olhar de Cinema – Dia 04

12º Olhar de Cinema – Dia 04

Por uma coincidência não muito feliz, o final de semana do Olhar de Cinema caiu justamente no final de semana que eu tive aula da pós-graduação que faço (Patologia das Construções). Além de prejudicar o assistir, já que deixei de ver alguns filmes por conta disso, como foi o caso do longa internacional da competitiva, No Cemitério do Cinema, também tornou tudo mais complicado à medida que precisei sempre correr, no sentido literal da palavra. No sábado, por exemplo, minha aula acabou as 18 horas, a sessão de Toda Noite Estarei Lá começava as 18h30, ou seja, cheguei com as portas da sala quase se fechando. No fim tudo deu certo, mas poderia ser sem tanta emoção.

Na noite de sábado assisti aos dois filmes das competitivas. Toda Noite Estarei Lá pela Competitiva Brasileira e Disco Boy pela competitiva Internacional. E como tenho feito em todo texto publicado nessa cobertura do Olhar de Cinema, já aviso que há, entre estes dois filmes, uma linha compartilhada entre o ser e o pertencer (ou querer pertencer).

TODA NOITE ESTAREI LÁ

O filme acompanha Mel, uma mulher trans, que está destinada a ocupar um espaço dentro de uma igreja evangélica. Ela quer apenas ter o seu direito assegurado de poder frequentar aquele lugar.

É engraçado a nossa relação com a religião, sobretudo daqueles que são minoria e que sofrem, muito também, pelo que está escrito na bíblia, enviesada ou não, mas que, de alguma forma, veem necessidade de professar sua fé nesses templos construídos por homens que utilizam, por vezes, de forma leviana o dinheiro do povo, dos fiéis – aqueles que nada tem, mas que muito dão.

Fiquei muito tempo pensando o quão contraproducente é uma mulher trans fazer questão de entrar em uma igreja evangélica. Notem, ela não queria ser respeitada pelos religiosos, ela queria fazer parte daquele grupo. Foi um tanto massacrante vê-la em diversas noites, proibida de entrar, segurando cartazes de denuncia contra esse autoritarismo do pastor. A vontade era de chegar para ela e dizer que aquilo não valia a pena (ela estava na sessão em que eu me encontrava). Que para encontrar Deus, embora eu não acredite, basta a sua fé e nada mais. Essa repetição, noite após noite, soou, às vezes, mais como orgulho do que pelo fato daquela igreja ter alguma representação para sua vida e para sua fé em Deus.

Por outro lado, quando a direção focava em mostrar o dia a dia dela, o filme conseguia navegar por caminhos tortuosos, mas com muita clareza de onde poderia chegar. Sua profissão, a relação que tinha com sua mãe, a relação com aquela comunidade e até mesmo a sua relação com a fé. Fé esta que é, de forma constante, graficamente exemplificada nas paredes de sua casa. E estava aí a solução do drama. A sua própria casa se transformaria em um templo, no qual ela poderia se conectar com Deus.

Embora não seja a grande motivação do filme, é deixado claro todas as dificuldades vivida por Mel. A direção mesmo sem querer se debruçar sobre isso, para não dar um tom melodramático demais, não tem como cercear a protagonista. E ela, Mel, tem estampado suas dores em seu corpo e, mesmo sendo muito forte e extremamente resiliente, dá para imaginar o quanto já sofreu.

Uma cena me chamou bastante atenção. Mel sentada, ao seu lado vemos a escada, bem vermelha, de sua casa, no exato momento em que ela falava “…se trata de sangue sendo derramado”. Toda a mise-en-scène vibrando a mesma nota, sendo sutil e áspera ao mesmo tempo.

As diretoras fazem questão de nos informar a que recorte aquele filme se passa. E para nenhuma surpresa nossa, estamos de frente com a ascensão de poder da direita brasileira. As igrejas evangélicas servindo de instrumento do governo. A justiça aparelhada. As minorias desrespeitadas.

Me incomodou um pouco a própria mãe de Mel, chamando ela de ele. Me pareceu que as diretoras não deram tanta atenção a isto como deram em uma discussão dentro do fórum quando o mesmo ocorreu. Então a escolha do que iria para o corte final deste documentário acabou que encontrou esse contraditório. Contudo não há qualquer duvida de que a obra tenha sido muito bem pensada, executada e muito respeitosa com Mel.

Embora haja toda essa atenção à religião – algo que não suporto –, o filme retrata as dificuldades diárias que uma pessoa trans passa em nosso país. Mel é um grande achado. Uma personagem muito vibrante e que preencheu a tela do cinema. O filme é todo dela.

DISCO BOY

No texto acima Mel é uma mulher trans que deseja ser bem-vinda na Igreja Evangélica. Já em Disco Boy temos o joven Aleksei fugindo da Bielorrússia em direção a França – país conhecido pela sua resistência em relação aos refugiados e migrantes. Entretanto a história de Aleksei se desenvolve através de outras camadas, que vão além do que ser apenas aceito por aquele País.

O diretor Giacomo Abbruzzese compõe as primeiras cenas de modo a nos apresentar aqueles que sustentarão o conflito principal. Abbruzzese abre o filme em meio a uma floresta, uma cabana com corpos negros amontoados e algo muito próximo de um ritual africano. Logo após somos apresentados a dois amigos bielorrussos em uma jornada com um destino final: França.

Muito embora haja, na trama, a personificação de dois personagens (Aleksei/Jomo) como lados opostos de um conflito (França/Nigéria), a verdade é que Aleksei – que se torna Alex depois de entrar para Legião Estrangeira Francesa – não é cidadão francês e não tem qualquer identidade com aquele conflito. E me parece questionável certas escolhas da direção, sobretudo na escolha de Aleksei como sendo a nossa perspectiva nesta trama, uma vez que, ao se estabelecer o problema – invasão da Nigéria por empresas Francesas de exploração de petróleo. Exploração esta que, através de tomadas aéreas, deixa claro o poder destrutivo que tem para o ambiente.

Por mais que existe um interesse do diretor em mostrar Aleksei/Alex, não nos simpatizamos por completo. O longa não rompe certas barreiras e, estas, se colocam, também, a nossa frente. Aleksei continua sendo um estranho ali, naquele novo País e, também, para o público que o assiste na sala de cinema.

O filme que possui na música e no trabalho de som como um todo seu grande trunfo – característica defendida pelo próprio diretor minutos antes desta sessão começar – dispõe de alguns minutos para que esta sonoridade nos envolva. Esse objetivo é alcançado. Entretanto um grande problema que enxergo é na mudança de conceito de gênero. Disco Boy começa como um drama, se transforma em um drama de guerra e por fim se consolida em uma fantasia com direito à um epifania final

Disco Boy me pareceu muito pretencioso. Mas ao mesmo tempo que possuía uma mensagem forte ao fundo, não conseguiu transformar essa mensagem em algo palpável para a trama. Assim o filme passeou por subtextos envolvendo aqueles personagens sem que, de fato, algo de importante acontecesse com eles. Essa falta de um significado maior, impediu que a obra alcançasse notas maiores.

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