13º OLHAR DE CINEMA – RETRATO DE UM CERTO ORIENTE

13º OLHAR DE CINEMA – RETRATO DE UM CERTO ORIENTE

Antes de começar a crítica propriamente dita preciso trazer uma informação importante sobre minha percepção dos filmes exibidos em festivais. Não costumo ser, mas nessas ocasiões a benevolência me toma conta. Meu olhar fica muito mais sensível aos filmes por conta de toda a ambientação do festival, sobretudo em relação ao Olhar de Cinema, com o qual tenho bastante carinho e este é o quarto ano seguido que cubro como crítico de cinema. Dito tudo isso, não vou também fechar os olhos para aquilo que não me agrade. Verão que ao longo do festival já teve alguns filmes dos quais eu não gostei e isso ficará muito evidente em meus textos. Mas de um modo geral, eu tendo a me entregar ao festival, aos filmes e à experiência que é fazer a cobertura do Olhar de Cinema. retrato de um certo oriente

De uma forma muito bonita a abertura do Olhar de Cinema repetiu o ano passado, 2023, quando exibiu seu primeiro filme na Ópera de Arame, ponto turístico famoso e lindíssimo de Curitiba. A imersão que ocorre lá é diferenciada por dois motivos: o tamanho do teatro e o tamanho da tela. Mas Retrato de Um Certo Oriente, filme dirigido por Marcelo Gomes, sequer precisou desse clima construído por aquele espaço para nos entregar um filme belissimamente sensível e tocante.

Há, na opinião de muitos, uma resistência aos filmes preto e branco realizados atualmente. Para estes, esses filmes só se justificam por terem sido realizados apenas quando não tínhamos o advento da tecnologia, o que soa como uma tremenda ignorância. Aqui o preto e branco não só nos leva para um passado, como traz consigo, em maior ou menor grau, ao decorrer do filme, um estado de melancolia. Mas é notável, também, como o diretor ao demonstrar seu apego a terra, consegue captar cenas da natureza, sobretudo da floresta Amazônica, e que parece, até, que estamos diante de uma imagem colorida, tamanha a exuberância e imponência daquelas árvores e matas.

Retrato de Um Certo Oriente, baseado no romance do escritor amazonense Milton Hatoum – Relatos de Um Certo Oriente -, conta a história de Emilie (Wafa’a Celine Halawi), que junto de seu irmão Emir (Zakaria Al Kaakour), fogem do Líbano em 1949, um país em constante conflito, em direção ao desconhecido, o Brasil. Nestes primeiros minutos fica claro a relação familiar forte que eles têm. Ao perderem os pais ambos depositam um no outro bastante confiança, o que fica claro na cena em que Emir tira Emilie do convento para que mudem drasticamente às suas vidas, atravessando o Oceano Atlântico rumo ao Brasil.

O retrato que temos da personagem Emilie é a da mulher que desde muito cedo já passou a viver de acordo com a fé cristã, inclusive, como citei anteriormente, morando em um convento. Então há um purismo, uma inocência muito bem pontuada, principalmente, pela atuação da atriz que neste primeiro momento está sempre de cabeça baixa, desviando os olhares, tentando passar sempre despercebida. O que muda completamente quando vê o Omar (Charbel Kamel) pela primeira vez. É neste momento que um despertar acontece com a personagem, dando cada vez mais ouvidos aos seus sentimentos e se permitindo ser livre, tal qual como ela é de fato.

É interessante notar como o diretor costura esse longa através de muitos discursos. Há uma ênfase na terra, essa relação conflitante entre deixar para trás seu país em busca de uma liberdade em terras estrangeiras. Percebemos que o olhar deste filme é da Emilie, então temos aqui o protagonismo feminino não só no filme como nas decisões tomadas pela personagem. Mas o que chama bastante atenção é o trabalho feito em relação as diferentes crenças e religiões. O Líbano hoje é dividido basicamente entre mulçumanos (54%) e cristãos (40%). Omar é mulçumano, Emilie e Emir são cristãos.

Parafraseando o que disse hoje no X (antigo twitter):

“Todas as grandes desgraças do mundo contemporâneo têm, direta ou indiretamente, a religião como causa.”

Aqui não é diferente. Mas o olhar é microscópico evidentemente. Emir não aceita esse relacionamento, em uma clara discriminação e intolerância religiosa. Mas ao mesmo tempo em que é duro com Emilie em relação a esta proximidade dela com Omar, consegue ter um olhar de muito afeto sobre ela. Uma das cenas mais bonitas, na qual o amor fraterno exala da tela, é quando ele vê as fotos que seu amante tirou de Emilie na balsa em direção a Manaus. Um olhar de alguém que nutre um amor puro. E nesse sentido conseguimos enxergar que ele, de fato, acha estar protegendo Emilie ao não permitir que ela se relacione com Omar.

Como já frisei aqui algumas vezes, Marcelo Gomes nos brinda com a construção de diversos temas. E cada uma dessas construções é realizada com muito respeito. Primeiro com as nossas origens, depois com a fé, e tudo isso envolto de todo o amor presente na obra. Mas é preciso pontuar o trabalho que ele faz sobre os povos indígenas. A personagem Anastacia (Rosa Peixoto) é uma ponte entre a história que se passa entre os irmãos e Omar e o poder da nossa terra. Após um incidente na balsa, o filme vai passar alguns minutos se debruçando um pouco sobre o estilo de vida dos indígenas. É nesse momento que os três personagens ganham, de certa forma, a benção para se estabelecerem aqui. Emir se cura. Omar e Emilie se amam.

Retrato de Um Certo Oriente possui um olhar muito sensível sobre os temas abordados. Cultura, religião, crença e origens. E o respeito que Marcelos Gomes tem, também, pela natureza capturada em sua lente é invejável. Já posso dizer que a abertura do festival se deu com um dos melhores filmes de toda a sua programação.


Filme: Retrato de Um Certo Oriente
Elenco: Wafa’a Celine Halawi, Charbel Kamel, Zakaria Kaakour, Rosa Peixoto e Eros Galbiati
Direção: Marcelo Gomes
Roteiro: Marcelo Gomes, Maria Camargo e Gustavo Campos
Produção: Brasil
Ano: 2024
Gênero: Drama
Sinopse: Acompanhamos dois irmãos católicos, Emilie e Emir, que, em 1949, partem de um Líbano na iminência da guerra em busca de uma nova vida em território estrangeiro, numa viagem rumo a um Brasil desconhecido. Quando Emilie se apaixona por Omar, um comerciante muçulmano residente em Manaus, o ciúme do irmão terá graves consequências. Neste épico íntimo do diretor Marcelo Gomes, baseado em romance de Milton Hatoum, o encontro entre culturas distantes entrelaça questões coletivas de memória, tradição e pertencimento, num relato ao rés da pele que lança um olhar cuidadoso às histórias fundacionais de imigrantes no país
Classificação: 14 anos
Distribuidor: O2 Play
Streaming: Indisponível
Nota: 8,0

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