Otro Sol (Teare, 2023) apresenta um pequeno vilarejo no deserto do Atacama. Nele, dois primos conhecem a lenda de uma dupla de ladrões que assaltou a Catedral de Cádiz, na Espanha. Enquanto tentam sobreviver ao seu cotidíano, se aprofundam cada vez mais na história e percebem paralelos cada vez maiores com eles mesmos.
É curioso como Otro Sol (Teare, 2023) acaba parecendo com uma mistura de Jean-Luc Godard (Acossado, O Demônio das Onze Horas) e Martin McDonagh (Em Bruges, Sete Psicopatas e um Shih Tzu). E, da mesma forma, é mais curioso ainda como essa mistureba maluca funciona tão bem.
Otro Sol (Teare, 2023), ficção e realidade
Logo em seu início, Otro Sol (Teare, 2023) apresenta ao espectador um suposto caso real, ocorrido nos anos 80 na Espanha. Tal acontecimento foi um roubo, na Catedral de Cádiz, protagonizado por dois ladrões chilenos. O filme apresenta o nome dos ladrões em destaque na tela. Logo em seguida corta para um plano onde vemos a dupla de primos, interpretados por Iván Cáceres e Thomas Quevedo.
Por consequência, acaba sendo explicitado um certo paralelo entre os ladrões e os dois personagens principais do filme. Embora este paralelo vá ser desenvolvido melhor ao longo do filme (sobretudo na segunda metade), de início ele é negado. Principalmente devido a um dos ladrões da catedral se revelar como um dos moradores do vilarejo chileno onde os garotos estão.
A forma artística é uma grande brincadeira
Então, Otro Sol (Teare, 2023) começa com o seu experimentalismo. Logo percebe-se que a obra está misturando ficção e realidade. Afinal, todo o arco dos primos é ficção, entretanto a história do roubo existe. Ao mesmo tempo, paradoxalmente, temos um ator interpretando um dos fatídicos ladrões, em uma situação ficcional. Mesmo que o amálgama de ficção e realidade não seja nenhuma novidade, a maneira como o diretor Francisco Rodríguez Teare faz é extremamente interessante e até lúdica. A começar, por exemplo, com a escolha de gravar em película. Decisão que, como resultado, faz com que tudo se assemelhe à documentação da realidade. Quase como uma gravação do cotidiano feita para guardar de recordação.
Além disso, Teare brinca com a ficção através da manipulação do espaço e do tempo. Dessa maneira, conforme o espectador vai se aprofundando na história do roubo (e dos primos), o filme vai brincando com a localização dos personagens e com a linha do tempo dos acontecimentos. Inegavelmente, a montagem corrobora muito para esse efeito. O diretor trabalha com cortes bruscos e não conectados, transportando a dupla de primos de um lugar para outro. Por consequência, desconstruindo a noção de espaço ambiental do espectador (tal como Godard costumeiramente fazia).
O tempo e o espaço de Otro Sol (Teare, 2023)
Ao mesmo tempo que o filme vai brincando com essa noção espacial, as barreiras entre real e ficção vão se desvanecendo ainda mais. Assim, Otro Sol (Teare, 2023) vai estabelecendo uma certa “recriação” do roubo, usando os dois primos — que originalmente estavam no Chile e vão para a Espanha através da manipulação do espaço. Além disso, o manejo do tempo é tão absurdo que não é nem perceptível o recorte temporal do qual o filme se encontra. Sendo assim, a confusão entre realidade e ficção se amplia. Afinal, em dado ponto o diretor consegue fazer o espectador até se questionar se aquela dupla de primos não são, na verdade, os ladrões do caso (o que potencializa o paralelo inicial).
A violência não violenta
Entretanto, nem só de brincadeiras experimentais na sua forma vive Otro Sol (Teare, 2023). O diretor consegue imbuir na obra uma boa (e bem engraçada) dose de humor, com uma veia ácida e absurda. Inegavelmente, Otro Sol (Teare, 2023) é um filme que vive em um mundo de violência extrema. Mas, ao invés de ser uma violência gráfica ou fetichizada (não que tenha algum problema nisso), é uma violência que está presente mais nos diálogos, em relatos contados, do que no visual (na realidade, nem me recordo de nenhum momento onde ela se apresenta em tela).
Por exemplo, no ínicio do filme, na primeira vez que um dos ladrões originais surge em cena, o filme assume uma abordagem de mockumentary (aqueles documentários falsos a lá The Office, comédia de 2005). Desse modo, o homem conta os relatos sangrentos e insensíveis de sua época de crime na Europa. Por consequência, a maneira como a câmera captura o momento, transforma-o em uma grande piada absurda. Em virtude disso, a violência ouvida ali se torna quase satírica, escrachada — e são nesses momentos que a obra remete à Martin McDonagh, ou até à Monty Python e humor britânico no geral.
Diversão caótica em Otro Sol (Teare, 2023)
A atuação do elenco, sobretudo da dupla principal Iván Cáceres e Thomas Quevedo, corrobora para todo esse cínico e maluco amálgama de experimentalismo e humor. Em outras palavras, o diretor conduz seu elenco de uma maneira que parece quase alheia ao seu redor. Enquanto aquele mundo está imerso na violência e no crime, parece que todos os personagens não levam nada daquilo a sério, é tudo uma grande brincadeira. Ademais, mesmo quando a situação se revela um pouco mais densa, os atores sugerem uma apatia, ou até sarcasmo, que casa muito bem com a forma da coisa toda.
Em suma, Otro Sol (Teare, 2023) brinca com quase tudo que consegue brincar. Como resultado, sua forma assume um aspecto extremamente caótico que concilia muito bem com aquele mundo e suas situações. Por fim, uma abordagem que poderia ser catastrófica e entediante, nas mãos de Francisco Rodríguez Teare encontra um maravilhoso deleite.
Filme: Otro Sol Elenco: Iván Cáceres, Thomas Quevedo, Juan Pizarro Direção: Francisco Rodríguez Teare Roteiro: Francisco Rodríguez Teare Produção: Chile, França, Bélgica Ano: 2023 Gênero: Comédia, Experimental Sinopse: Ao tentar crescer na vida, dois primos vão percebendo a similaridade de sua vida com a lenda de dois ladrões chilenos. Classificação: 14 anos Distribuidor: Don Quichotte Films Streaming: Indisponível Nota: 9,0 |