Ao contrário da cultura branca e acadêmica frequentemente representada nos espaços e registros, como também explorados pela câmera do diretor Zebrinha em vários momentos, a cultura negra muitas vezes carece de registros e memórias que documentem seus feitos e conquistas ao longo dos anos. No entanto, a iniciativa deste filme visa resgatar e preservar essas histórias da dança negra que, em determinado momento, enfrentaram uma tentativa de apagamento. Através da poderosa ferramenta que é o cinema, os depoimentos dos personagens são trazidos à tona para enriquecer uma narrativa de resistência que está longe de estar concluída na contemporaneidade.
A dança, muitas vezes questionada como forma artística, desempenha um papel essencial como manifestação política em meio a inúmeras histórias protagonizadas por indivíduos negros que desafiaram grandes instituições. A Bahia, conhecida por sua rica diversidade, vivenciou e continua a enfrentar períodos de exclusão em uma população majoritariamente composta por pessoas negras. De fato, a Bahia abriga a maior população negra fora da África. Como é possível que em um estado com uma presença tão significativa de negros, indivíduos brancos continuem a dominar? Essa questão é ainda mais complexa quando consideramos a cultura baiana, que também é amplamente reconhecida e valorizada.
Apesar de ser uma série de entrevistas, a abordagem de Zebrinha, que integra seus personagens ao ambiente para criar um campo visual dinâmico, é envolvente e evita que a audiência se canse da mesma estética. Nas entrevistas conduzidas virtualmente, ele explora o espaço físico além do computador para compor seus enquadramentos, estabelecendo conexões interessantes entre os personagens, o ambiente e o filme. Além disso, Zebrinha enriquece a narrativa ao incorporar imagens de arquivo, o que é particularmente significativo, pois materiais de arquivo que representam pessoas negras muitas vezes são escassos nos acervos brasileiros. O diretor apresenta uma galeria rica de expressões por meio da dança, que frequentemente complementa as experiências e desafios enfrentados pelos personagens.
Em uma das declarações de um dos personagens, ele menciona que no passado foi uma “época de Chumbo” devido às dificuldades enfrentadas por grupos de bailarinos, capoeiristas e dançarinos na Bahia, um estado que deveria ser o mais diversificado do Brasil e da América Latina. Muitas vezes, eles eram confrontados com a ideia de que seus corpos não eram adequados para aquelas práticas e que precisavam usar maquiagem para parecer mais brancos. No entanto, a dança gradualmente adquiriu um significado político nesses contextos, levando muitos personagens a explorar outros territórios. Ainda assim, persiste a sensação de que aqueles que permaneceram na Bahia enfrentaram desafios ainda mais intensos.
Infelizmente, a obra de Zebrinha, apesar de oferecer vários insights e desdobramentos interessantes, não mantém um nível de impacto consistente ao longo de todo o filme. A repetição do formato das entrevistas, que se assemelha à linguagem tradicional dos documentários, resulta em longos períodos de estase que parecem se prolongar, deixando as surpresas mais impactantes para o final da obra, como as mortes de dois mestres da dança na região. No entanto, é importante destacar a relevância da participação do filme no Cine PE e sua própria existência. “Ijó Dudu, Memórias da Dança Negra na Bahia” contribui significativamente para o registro das experiências da comunidade negra, embora ainda não tenha atingido todo o potencial imagético que poderia alcançar no momento presente.
Filme: Ijó Dudu – Memórias da Dança Negra na Bahia Elenco: Altair Amazonas e Silva (Amazonas), Clyde Morgan, Edeise Gomes, Edileuza Santos, Elísio Pitta, Eurico de Jesus, Eusébio Lobo, Inaicyra Falcão, Ivete Ramos, Jorge Silva, Lindete Souza, Luiz Bokanha, Luiza Meireles, Macalé, Nadir Nóbrega, Nildinha Fonsêca, Reginaldo Daniel Flores (Conga), Renivaldo Nascimento (Flexinha) e Vânia Oliveira. In memoriam: Augusto Omolú, Raimundo Bispo dos Santos (Mestre King) e Raimundo Senzala. Direção: José Carlos Arandiba “Zebrinha” Roteiro: Susan Kalik e José Carlos Arandiba “Zebrinha” Produção: Brasil Ano: 2022 Gênero: Documentário Sinopse: Ijó Dudu, Memórias da Dança Negra na Bahia é um filme documentário construído a partir da Memória Viva. Denúncia poética, contada através das vivências e saberes das Mestras e Mestres pioneiros e protagonistas da Dança Negra na Bahia. Uma memória de corpos, mentes, ideias ousadas e corajosas de pelo menos duas gerações de mulheres e homens negros que fizeram de seus corpos as ferramentas principais para se afirmar na luta política, mas sobretudo se afirmar enquanto mulheres e homens, negras e negros. A Memória da Dança Negra na Bahia é também a memória da resistência negra na Bahia, memória da história da Bahia e memória da resiliência democrática da Bahia. Classificação: Livre Distribuição: Não informado Streaming: Indisponível Nota: 8,5 |