47ª MOSTRA SP – TIA VIRGÍNIA

47ª MOSTRA SP – TIA VIRGÍNIA

Tia Virgínia se inicia com a personagem título – vivida por Vera Holtz – ajustando um relógio de ponteiros antigo. Ela gira os ponteiros em sentido horário, sem nunca voltar para o sentido contrário (até porque ela não pode; ninguém pode). Como se ela estivesse refletindo sobre o tempo que passou e que nunca irá voltar.

Esses poucos minutos são o suficiente para o diretor Fábio Meira posicionar o arco narrativo e os sentimentos de sua protagonista. Virgínia é uma senhora de 70 anos, solteira e sem filhos; a filha mais velha de uma família com outras 2 irmãs, todas com família e filhos, que a convencem a se mudar para a casa dos pais no interior e cuidar de sua mãe doente de 99 anos após o falecimento do pai da família. 

Aqui acompanhamos um único dia da vida da protagonista, em que ela está organizando a casa para receber familiares para a ceia de Natal. É com a chegada deles que começamos a entender melhor as relações do núcleo familiar, principalmente entre as irmãs — interpretadas por Arlete Salles e Louise Cardoso. A dinâmica do elenco certamente é um dos principais pontos positivos do filme. A trinca formada por Salles, Cardoso e Holtz é incrível e nos proporciona momentos que passeiam pela mais pura ternura aos desafetos e brigas. Esta última, por sinal, é o grande destaque e nos entrega uma das melhores atuações femininas do ano, que faz jus, além de uma bela homenagem, a uma personagem inspirada em duas mulheres importantes na vida do diretor.

De acordo com o diretor, ele utiliza pessoas da sua própria família e das histórias que ele escutava e documentava para construir os personagens e a trama de Tia Virgínia. É notável o quão pessoal é este filme para ele, pela forma em que dirige os seus atores e pela maneira em que trata os seus personagens — todos muito bem escritos, desenvolvidos e cheios de nuances, que os impede de se tornarem meras caricaturas. Cuidado este que se reflete no texto e na dinâmica singela e real da família, que, por mais que seja pessoal, representa muito bem as estruturas familiares brasileiras — em que todo mundo acaba identificando uma tia, mãe ou avó ao assistir.

O design de produção ajuda a tornar o filme ainda mais pessoal, pois muitos dos objetos utilizados (o relógio, por exemplo) e as decorações são da própria família de Meira e contam suas próprias histórias. A construção de ambiência é essencial e a fotografia valoriza todo esse trabalho com takes longos que aproveitam todos os cômodos e desenvolvem a casa quase como um personagem à parte.

É interessante como o cenário conversa com os personagens e se manifesta simbolicamente de formas muito diferentes entre eles. Do sentimento de enclausuramento e desumanização de Virgínia ao distanciamento de Vanda, que parece não pertencer àquele lugar dado a sua ausência em momentos importantes da família, e passando pelo olhar crítico de Valquíria descontente de tudo que está ali; numa forma de manifestar suas infelicidades e frustrações com o que está em sua volta.

Contudo, o que mais me surpreendeu no filme foi o seu tom de voz. Pela sua premissa, esperava um melodrama com toques de drama psicológicos, mas ganhei uma dramédia de costumes, que explora o que há de mais brasileiro nas dinâmicas familiares, com um arco dramático muito bem definido no centro de tudo.

Num âmbito geral, Fábio Meira impressiona por acertar todas as suas escolhas e brilhante em como retrata a solidão de uma vida inteira a partir de um único dia da vida da protagonista; onde precisamos exaltar novamente o trabalho de Holtz de interpretar tão bem esses sentimentos. Além disso, Tia Virgínia se apresenta como uma amálgama de memórias pessoais, que nos convida a refletir sobre nossas famílias e nas decisões. Retomando a cena, do relógio: se não dá para voltar no tempo, o que resta é consertar e arrumar o presente.


Poster_Tia Virgínia

Filme: Tia Virgínia
Elenco: Vera Holtz, Arlete Salles, Louise Cardoso, Antônio Pitanga, Amanda Lyra, Iuri Saraiva e Vera Valdez 
Direção: Fábio Meira
Roteiro: Fábio Meira
Produção: Brasil
Ano: 2023
Gênero: Comédia, Drama
Sinopse: Virgínia, uma mulher de 70 anos, nunca se casou e nem teve filhos. Ela foi convencida pelas irmãs a deixar a vida que tinha para cuidar dos pais. Agora, Virgínia se prepara para receber as irmãs, que viajam para celebrar o Natal.
Classificação: 14 anos
Distribuidor: Elo Studios
Streaming: Estreia 9 de novembro de 2023 nos cinemas
Nota: 8,5

*Filme assistido na 47ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo*

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