Dia 15 de março, quase duas semanas antes do aniversário de 60 anos de Quentin Tarantino, foi revelado que o diretor estava com o roteiro do seu décimo e último filme pronto e nos preparativos para conversar com estúdios para começar a gravação ainda em 2023. De acordo com o The Hollywood Reporter, o projeto recebe o título de The Movie Critic (em tradução livre: A Crítica de Cinema), que se passará em uma Los Angeles dos anos 70 e sua protagonista será baseada em Pauline Kael, uma das críticas de cinemas mais renomadas da história e que o diretor já mostrou profunda admiração. Para quem não conhece o seu trabalho, ela era conhecida pelas suas críticas ácidas e controversas, bem diferente das feitas pelos seus colegas de profissão.
Não é de agora que Tarantino fala sobre a sua aposentadoria do cinema e de que faria apenas 10 filmes, com o intuito de focar em novos projetos voltados ao teatro, literatura e televisão. Há anos os fãs dele (eu incluso) se empolgam na mesma medida que se desesperam a cada lançamento do diretor, por conta da aproximação da data limite e do número “10”. Não se sabe até que ponto essa fala é uma verdade absoluta para o diretor, principalmente quando falamos de Tarantino, um dos diretores mais declaradamente apaixonados por cinema. Será que ele conseguiria não fazer mais cinema? Só o tempo pode nos responder.
Enquanto não sabemos o que irá acontecer pós-The Movie Critic só nos resta voltar para o início de sua carreira e entender o que fez Tarantino ter conquistado um espaço só dele na história do cinema.
Desde a sua estreia em 1992, com Cães de Aluguel, já era perceptível que o diretor possuía algo especial. O thriller neo-noir de Tarantino se inicia com um grupo de assaltantes, todos usando codinomes (com exceção do chefe e do seu filho) que remetem a cores, discutindo em meio a um café da manhã a respeito da música ‘Like a Virgin‘ da Madonna e terminando com eles reclamando com Mr. Pink (Steve Buscemi) sobre não dar gorjeta. Já fica claro, a capacidade de Tarantino enquanto roteirista de criar diálogos memoráveis em situações e contextos que não combinam, em tese — quem mais colocaria gangster falando sobre a Rainha do Pop e do Disco!?
Com um orçamento de apenas 1 milhão e meio, mais ou menos, e Harvey Keitel como único nome conhecido da época, a arrecadação de Cães de Aluguel não foi das maiores. Acredito que nem tenha dado lucro, mas o alarde que o filme fez ao passar nos principais festivais do mundo (Sundance e Cannes, por exemplo) e conquistar indicações no Independent Spirit Awards, alçou o nome de Quentin Tarantino para os olhares do mundo cinéfilo. O questionamento foi lançado: se com apenas com 1 milhão de dólares, uma máquina de escrever e filmado praticamente numa única locação, Tarantino conseguiu criar um jovem clássico que reimagina os filmes de assalto para além do assalto em si, numa trama recheada de reviravoltas e algumas marcas que se tornariam registradas. O que mais ele conseguiria com um elenco de peso, distribuição e um orçamento maior?
O dia em que Quentin se tornou Tarantino
A resposta foi Pulp Fiction. Provavelmente o seu filme mais aclamado e celebrado. Aquele que jogou Tarantino para o mundo, conquistou fãs e mostrou quem ele queria ser como diretor. O seu segundo longa é ousado, por ser contado de forma não-linear, onde os fatos não ocorrem em ordem cronológica, jogando para a audiência a função de estabelecer a linha e ligar os pontos de uma história multifocal em que acompanhamos, majoritariamente, John Travolta e Samuel L. Jackson — nos papéis de Vincent Vega e Jules Winnfied — numa missão de recuperar uma maleta, cujo conteúdo não sabemos, do Marsellus Wallace.
Esse é o ponto de partida do filme que conta com diversas reviravoltas, personagens esquisitos (Bruce Willis no papel que considero o mais diferente de sua carreira), subtramas, uma ode que mistura o pop com o grindhouse, sobreposições de gêneros cinematográficos — aqui temos comédia, ação, suspense, pastiche —, cenas e diálogos icônicos (a conversa do cheeseburger, o monólogo bíblico de Jules, o encontro de Vega e Mia e por aí vai) e um desenrolar que leva os personagens para uma jornada fora do convencional e imprevisível ao máximo.
Toda essa ousadia foi recompensada com a Palma de Ouro, em Cannes, e o seu primeiro Oscar na categoria de Melhor Roteiro Original. Prêmios não significam muita coisa, mas esse respaldo foi importante para um diretor que buscava reinventar de alguma forma a indústria.
Descomprimindo Pulp Fiction
Todos os filmes que Tarantino fez ao longo de sua carreira estavam, de certa forma, condensados em Pulp Fiction. Em Jackie Brown, seu terceiro longa-metragem e único baseado em outra fonte — no caso, o romance Rum Punch —, o diretor trabalha as referências que construíram o personagem de Jules Winnfield: o blaxploitation. Um subgênero controverso e com anos de discussões em cima dele, mas inegavelmente influente no cinema e na carreira de Tarantino, que o referencia em outros filmes. Aqui foi a primeira vez que Tarantino foi chamado atenção publicamente por Spike Lee pelo uso demasiado da N-world (a palavra apareceu em algum diálogo cerca de 38 vezes). A homenagem, ainda que levante muitos pontos problemáticos, foi razoavelmente bem feita e cumpriu o seu propósito principalmente ao trazer não só Jackson mas uma das principais figuras do blaxploitation nos Estados Unidos para protagonizar o filme como personagem título: Pam Grier.
Jackie Brown, por sua vez, foi um filme que esteve longe de alcançar o mesmo prestígio dos seus antecessores, se tornando até um pouco esquecível na filmografia do diretor. Com pouco alarde, Tarantino decidiu passar quase sete anos em hiato e focando no desenvolvimento de Kill Bill, um projeto que estava na mente do diretor desde Pulp Fiction e que, ao meu ver, é o que melhor sintetiza as suas referências e em como a sua mente funciona.
Protagonizado por Uma Thurman, Kill Bill é uma história de vingança dividida em dois filmes sobre uma mulher — de codinome A Noiva —, que estava grávida, e foi encontrada quase morta pelas autoridades no chão de uma capela em El Paso. Após alguns anos em coma, a personagem acorda com sede de vingança contra Bill e todos os envolvidos da gangue de matadores de aluguel aposentados intitulada de Víboras Assassinas, cujo o personagem era o líder. Premissa simples e que já vimos em muitos filmes anteriores, mas o que Tarantino faz aqui é tão genial que beira o subestimado por não ter tido o devido reconhecimento.
Mas antes de falar sobre a obra em si, é necessário entender o que um filme que mistura faroeste italiano, cinema grindhouse, cinema japonês (com foco no samurai), filmes chineses de artes marciais (wuxia) e Bruce Lee tem a ver com Pulp Fiction. Fora a mistura de gêneros cinematográficos atuando juntos para criar um organismo único, a história já havia sido parcialmente comentada por Mia Wallace (Thurman) quando ela sai com Vincent e descreve o piloto do seriado que participou, que praticamente bate com a história de Kill Bill.
Isso é um forte aceno ao Universo Compartilhado de Tarantino, onde ele já explicou que, sim, seus filmes compartilham do mesmo universo. Vincent Vega, de Pulp Fiction, e Vic Vega, de Cães de Aluguel, são irmãos, por exemplo. A marca de cigarros Red Apple aparece na grande maioria dos seus filmes. Há diversas outras referências e que se decidir focar nelas, vou passar um artigo inteiro só falando sobre isso, mas já dá para captar a essência. No entanto, existe uma separação: o Universo Mais Real do que o Real e o Universo Cinematográfico em si. Isso quer dizer que um está dentro do outro. Ou seja, quando os personagens de Pulp Fiction e Cães de Aluguel vão ao cinema, eles assistem Kill Bill (onde Uma Thurman interpreta Mia Wallace interpretando A Noiva, fez sentido? Caso não tenha feito, recomendo assistir Tarantino’s Mind, um curta brasileiro protagonizado por Selton Mello e Seu Jorge, disponível no Youtube).
Depois de entregar esse épico de ação ousado que foi Kill Bill, Quentin Tarantino traz um outro de ação mais autocontido como parte de um projeto interessante intitulado de Grindhouse, em parceria com Robert Rodriguez. O projeto consiste em simular a sensação de estar assistindo a uma sessão dupla de filmes-B nos cinemas. Tarantino dirige A Prova de Morte, enquanto Rodriguez entrega Planeta Terror. Entre um longa-metragem e outro, há trailers de filmes fictícios dirigidos por diretores convidados (alguns até se tornaram realidade, como Machete). É como se esse trabalho funcionasse como uma ode mais pura ao cinema alternativo que Pulp Fiction iniciou nos anos 90 e fechando, de certa forma, esse ciclo.
A Era do Revisionismo
Pós A Prova de Morte, Pulp Fiction ainda segue muito relevante e sendo descomprimido entre seus filmes. As suas marcas registradas como a violência cartunesca, o pastiche e as homenagens e reciclagens permanecem tão presentes quanto, mas é inegável que seus últimos quatro filmes (de Bastardos Inglórios a Era Uma Vez Em… Hollywood) compartilham uma identidade que demarca uma “nova fase” de Tarantino enquanto diretor e roteirista: pelo fato dos quatro utilizarem um contexto histórico real como pano de fundo de uma história fictícia que faz uma revisão de contas deste acontecimento.
O seu filme sobre caçadores de nazistas na Segunda Guerra Mundial, considerado por muitos o seu melhor filme, foi o primeiro dos quatro. Em Bastardos Inglórios — título que Tarantino pegou emprestado do longa italiano homônimo de guerra de Enzo G. Castellari — acompanhamos esse grupo de caçadores liderados por Aldo Raine (Brad Pitt) com o intuito de matar a maior quantidade possível de nazistas. Tendo eles como guia, acompanhamos outras diversas subtramas que exploram aquele cenário com foco em Shoshanna, uma mulher judia cuja família foi inteira morta pelo general Hans Landa — interpretado brilhantemente por Christopher Waltz. A partir desse ponto ela começa a se preparar para uma vingança com o intuito de acabar com os principais líderes da Alemanha Nazista e dar um fim a guerra. Ao contrário do que aconteceu de fato, no filme do Tarantino a Segunda Guerra acaba de uma maneira bem interessante e simbólica onde reafirma o poder do cinema e da arte, além de fazer uma revisão de contas com os erros dos estadunidenses pós-guerra, de terem abrigado generais nazistas em solo americano.
Os longas subsequentes embarcam nessa mesma onda de contextos históricos como pano de fundo. Django, Livre resgata e trabalha melhor do que Jackie Brown a narrativa de blaxploitation (ainda que o problemático em algumas questões, mas significantemente menos), ao mesmo tempo que presta as suas homenagens ao faroeste italiano — em especial o filme Django de Sergio Corbucci — a partir dos Estados Unidos escravista do século 18 e centrado num escravo liberto que dá nome ao filme e sua jornada em busca de libertar a sua esposa.
Ainda na mesma fatia história, agora no ano de 1877, Tarantino conta a história de um caçador de recompensas (Kurt Russell) e um afro americano da união (Samuel L. Jackson) em Os Oito Odiados, um longa que estende as homenagens de Tarantino ao faroeste italiano a partir da escalação do lendário Ennio Morricone como compositor (o primeiro filme de Tarantino com trilha sonora original), porém o filme logo se transmuta e se torna um suspense que mais lembra Os Cães de Aluguel do que Django, Livre ou um faroeste por si só.
O seu último filme até então, Era Uma Vez Em… Hollywood, é uma ode ao cinema, Los Angeles, a carreira de Sharon Tate (Margot Robbie) e a do próprio Tarantino, porque não, que utiliza como pano de fundo o final dos anos 60, mas com um desfecho completamente diferente (ufa!) — mais especificamente o Caso Tate-LaBianca, nome dado ao caso que ficou conhecido pelos assassinatos do casal Labianca e da atriz Sharon Tate (na época, grávida) e mais quatro de seus amigos em suas residências pela Família Manson.
Tarantino por Tarantino
Essas “duas fases” de Tarantino são interessantes, bem pontuadas e conversam muito bem entre si numa espécie de jornada cinematográfica. Na primeira observamos como ele enxerga o cinema, quais são as suas referências, como ele gostaria de ser visto, as suas marcas registradas e, basicamente, o que o tornou único e o destaque em meio a uma geração recheada de diretores renomados. Na segunda, vemos um Tarantino mais maduro e tocando em temas do mundo real com mais consciência, além de conseguirmos entender um pouco de sua visão de mundo.
Entre os seus filmes espetaculares, e até os mais fracos, sempre existiu algo que fica muito claro na minha cabeça do porquê ele consegue um espaço só dele na história do cinema, ao lado de nomes como Martin Scorsese, Steven Spielberg, Sergio Leone, Paul Thomas Anderson, Jean Luc-Godard, Agnés Varda, Akira Kurosawa e entre outros que estão cimentados de maneira única e irretocável pelas suas contribuições singulares para a sétima arte. Tarantino entendeu como poucos (as lendas supracitadas inclusas) o que é cinema e como utilizar a linguagem cinematográfica para contar histórias do seu jeito. Tarantino se tornou um diretor que buscou referências nos cantos menos badalados e as tornou pop, levando as linguagens dos filmes-B para o prestígio de uma premiação de cinema como o Oscar e Cannes; articulando-as ao lado de Leone e Kurosawa, por exemplo. Só ele tem essa mente insana e que funciona dessa forma, ainda bem. Quem mais poderia fazer isso tão bem e com tanto identidade?
Ao fim, só fica o meu humilde pedido para o mestre: Tarantino, pague o que deve e não se aposente sem entregar Kill Bill 3.