EDNA

EDNA

“Na natureza, nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”, disse um importante nome da Química moderna, o francês Lavoisier. Com quaisquer outros aspectos, áreas, departamentos da vida humana ocorrerá o mesmo, certo? Talvez.  

Segundo Aristóteles, a arte imita a natureza e, às vezes, a completa. A  natureza a qual ele se refere não é essa invenção humana do “outro”. Não se trata da natureza como distante, alheia a nós. Quando o preceptor de Alexandre nos diz que a Arte imita a Natureza, ele inclui a natureza humana. Ou seja, a Arte tem entre as suas essências duas características inerentes à humanidade: a diegese e a mimese, respectivamente, o discurso e a imitação, a narração e a reprodução. Talvez por essa relação tão intrínseca entre a Arte e a Humanidade, ambas resistem até hoje.  Talvez por essa relação soberana, seja impossível tentar arruinar uma enquanto há a outra. A tentativa de fazê-lo sempre se repete em tempos como os atuais, autoritários. 

Sabemos, porém, que esses tempos autoritários não surgiram ontem nem se encerrarão amanhã. E foi na vez da década de 60 que ocorreu a inesquecível, embora impune, ditadura cívico-militar brasileira que trouxe para muitas vidas como a de Edna violências e marcas que tomamos conhecimento através do filme “Edna”, dirigido por Eryk Rocha.  

Na época, à medida que surgiram relatos das atrocidades como as sofridas por Edna, também surgiram manifestações artísticas, inclusive e principalmente filmes, que as denunciavam apesar da perseguição e violência da ditadura. “Edna”, lançado em 2021, no entanto, decide lançar um olhar sobre o tema de forma tão inovadora quanto repetitiva.  A década de 60, bem como as seguintes, foram decisivas para a História Nacional. Durante esses anos a população sofreu uma série de abusos, violências e maus tratos do poder público da época comandado ilegitimamente por militares, devido ao golpe  militar de 1964. Diversos filmes trataram de assuntos como a migração, a miséria, o sertão, o abandono de terras por parte dos moradores fosse por falta de oportunidade e apoio para se sustentar, ou fosse pela destruição da natureza autorizada pelos governos militares da época. 

“Edna” decide encarar o tema de forma inovadora quando decide fazê-lo através da voz de uma única personagem e apresenta-a como militante, escritora, poetisa, sofredora e, em alguns momentos, até atriz. A diluição dessas facetas, aliás, a falta dela, é que é embaraçosa.  Edna é aparentemente uma dona de casa e aos poucos vai se revelando uma escritora, em seguida uma poetisa, depois uma personagem histórica e por fim uma heroína política sobrevivente. É uma progressão fascinante. Porém, a mistura da dona de casa, personagem e escritora não é tão bem diluída, o que causa uma sensação de dramaticidade forçada. A sensação é que fazia-se necessário uma direção mais cuidadosa com alguém que se propunha a, pela primeira vez, atuar.  Essa sensação se torna mais nítida nos momentos em que há sussurros, falas repetidas e a construção de um suspense que nos faz entender a existência de uma camada mística. Não há dúvida de que esse suspense seja a representação da opressão. Porém isso só fica nítido para quem já tem algum conhecimento sobre o tema. Há um texto no final do filme que não é apenas complementar mas sim fundamental para que, quem não tem conhecimento prévio do assunto, possa enxergar o relato de Edna como retrato de uma conjuntura muito mais ampla e atual do que geralmente se imagina. 

A Fotografia torna-se compatível com a situação, seu conteúdo e a personagem, através do que capta e transmite, sim. Porém, a forma como ela, a Fotografia, é feita no filme remonta quase exatamente, às vezes, à Fotografia de filmes que já trataram do mesmo tema no passado. Especialmente filmes do Cinema Novo, movimento do qual Glauber Rocha, um dos mais importantes cineastas e críticos do Cinema Nacional e mundial, e pai do Erik, foi um dos fundadores e principais nomes. 

O dano não se deve ao fato da Fotografia usar como inspiração ou base a Fotografia de filmes do passado. Faz sentido retomar as imagens junto ao tema, se pensarmos na conexão entre retomar um assunto que já foi registrado e, junto com ele, trazer também referências desse olhar que outrora o registrou. Há, porém, um certo exagero no uso dessas referências que pode causar a sensação de que a fotografia nada criou, apenas reproduziu. E tais referências se repetem de forma exaustiva. São inúmeros quadros e planos que são parecidíssimos com planos e quadros já feitos. Tudo demasiado, resulta em sobra. O problema, por vezes, se encontra no excesso, não na falta. 

O Som de Bruno Carneiro da Cunha e Waldir Xavier, é tão imersivo quanto a fotografia, permitindo ao espectador fincar os pés na realidade de Edna, seja através dos sons dos ambientes, seja através da captação excelente dos sussurros reveladores de Edna.  A Montagem de Renato Vallone, é fundamental para a construção dos momentos de suspense que, embora nos permita imaginar o medo presente naquelas terras, não é tão bem sustentado pelo filme. A montagem também nos proporciona uma experiência de assistir o despetalar das várias camadas de Edna através de uma progressão narrativa instigante.

Por fim, “Edna” consegue trazer em si propostas interessantes apesar das falhas que apresenta. Talvez até mesmo por causa delas consiga atrair o espectador para um lugar novo e revelador envolvendo-o em poesia, na fotografia, no som, na montagem e no roteiro.


FilmeEDNA
Elenco: Edna Rodrigues de Souza e Antonio Maria Cabral (Carlos)
Direção: Eryk Rocha
Roteiro:  Gabriela Carneiro da Cunha, Eryc Rocha e Renato Vallone
Produção: Brasil
Ano: 2021
Gênero: Documentário
Sinopse: À beira da rodovia Transbrasiliana, Edna vive em uma terra em ruínas, construída sobre massacres. Criada apenas pela mãe, ela experimenta, no seu corpo e nos corpos de seus descendentes, as marcas de uma guerra que nunca acabou: a guerra pela terra. Tecida a partir dos relatos e escritos de Edna no caderno que ela intitulou A História de Minha Vida, a narrativa híbrida transita, entre real e imaginário, por guerrilhas, desaparecimentos e desmatamentos, mas também pela força de mulheres, rios e matas que insistem em sobreviver.
Classificação: 14 anos
Distribuidor: Aruac Filmes
Streaming: Looke
Nota: 7,5

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