MADRUGADA

MADRUGADA

“Aquele lugar é um sítio que eu já não queria estar. Sai porque eu queria saber como eu ia reagir, o que sobraria de mim se me tirasse do chão”, diz Alexandra Espiridião, uma das personagens do filme “Madrugada” dirigido pela grande Leonor Noivo, exponente do bom cinema português. A mesma Alexandra continua: “Acho que só sou feliz quando faço aquilo que verdadeiramente desejo. Quando o fiz, quando não minto, quando não estou fazendo o que esperam. Quando estou a fazer aquilo que eu acredito. Mas como é que isso se faz? Como é que se deita tudo fora? Como é que a gente abandona tudo aquilo que tivemos a construir? Andamos anos e anos a acreditar, a lutar, a nos esforçar para… E de repente percebemos que isso não é ser livre. Estamos cada vez mais a ficar atreladas, agarradas às coisas. Como é que se deixa isso tudo? Como que se diz ‘vou-me embora’?”

Nós sentimos, embora sem saber, a força e fragilidade, porque flexível, das prisões que nos amortecem. Em “Madrugada”, em diversos níveis tão pouco tempo, percebemos as, as prisões, presentes nas mais sutis cenas e falas, embora sem obviedade. Aliás, o filme nos mostra sem dificuldade que é possível tratar de algumas questões relevantes de ordem política e existencial sem descuidar da linguagem, do Cinema. Mas quem inventou a beleza? Quem pode brincar com ela? A quem ela é renegada antes mesmo de ser vista? Aí já é outra seara… Aliás, seu atrativo é também uma promessa cumprida: narrar uma perspectiva de existência social eurocêntrica pouco vista em filmes portugueses. Eurocêntrica e portanto ocidental. Ou não? E  “Madrugada” vai além: constrói seu roteiro com uma fluidez deleitável. Resolve e dissolve-se sem que percebamos. Nos surpreende sem decepção nesse ou em qualquer outro quesito.

O filme trata também de uma insegurança profissional, da ausência materna e da intimidade dos sonhos. De alguma forma, símbolos do que se entende como Ocidente. A sociedade de consumo e descarte; a misoginia que, por medo, necessita forjar um controle à vida das mulheres; e, por fim, o espaço perdido para o que há de mais íntimo, irremediável, ao que não pertence às massas e, por isso, é considerado incabível: o sonho nas horas da madrugada. 

Junto a e além disso, há Lília. Uma brasileira que exala alguma, sua liberdade e, ao chegar em Portugal, rejeita as praias. Ela rejeita os espaços públicos que, através das microagressões (ou macro) cometidas por homens portugueses, se tornam símbolos deles. Sim! E por isso a rejeitam, os espaços. A praianos outrora fora uma extensão da sua alma, nunca mais a viu. E houve a tragédia milenar: a polis é exclusivamente masculina mais uma vez. As mulheres na cumeeira, no centro da residência, lavando, passando, cozinhando. Não cabe mais. Aliás, por que já coube? É por isso que os poros insubmissos, no escuro do vão noturno, sonham e seu manifesto nos escancara. As escamas que aparecem e desaparecem já não causam euforia ou desespero. As raízes, varizes, rugas, servem tão somente para convidar-lhes a dançar, a sonhar, a partir e encontrar o abismo que não se sabe. Aquilo que não lhes dizem. Aquilo que, a depender apenas das suas vontades, sem interferência alheia, será delas.

“Madrugada” é sobre tudo isso. Mas também pode ser sobre quase nada. Como já mencionei, seu roteiro tem uma construção boa e fluida o suficiente para que sua narrativa por si só nos perpasse. Porque é disso que se trata o Cinema. O Som traz nenhuma grande revelação ou desastre, é bom. Basta. A Montagem permite que o roteiro conclua sua viagem e retorne. As atuações são tão boas quanto a Direção de Arte: imperceptível de tão boa. E tudo isso ecoa: sobre tanto e sobre quase nada. 


Filme: Madrugada
Elenco: Isabel Costa, Alexandra Espiridião, Ana Teresa Magalhães, Lilia Trajano
Direção: Leonor Noivo
Roteiro: Leonor Noivo
Produção: Portugal
Ano: 2021
Gênero: Drama
Sinopse: “Madrugada” narra uma perspectiva de existência social eurocêntrica pouco vista em filmes portugueses no contexto de festivais, numa linha que faz a tecitura do curta partir do código documental, atravessar o cinema naturalista até se encontrar com ares de certo realismo fantástico, assim como são, de algum forma, as madrugadas das personagens em cena. (B. G.)
Classificação: 14 anos
Distribuidor: Terratreme Filmes; PORTUGUESE SHORT FILM
Streaming: Indisponível
Nota: 8,0

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