Um toque de realidade
O cineasta Cristiano Burlan escancarou suas dores de família em sua Trilogia do Luto (Construção, Mataram Meu Irmão, Elegia de um Crime). Perdeu seu pai de forma misteriosa, perdeu seu irmão após uma ação policial, e perdeu sua mãe assassinada. Enfrentou seu luto em praça pública por meio de seus filmes. Com “A Mãe”, traz para a ficção a realidade de muitas famílias brasileiras. Filhos mortos, desaparecidos, famílias dilaceradas pela dor.
“A Mãe” conta a história de Maria, interpretada com força e vulnerabilidade por Marcélia Cartaxo (a eterna Macabéa de “A Hora da Estrela“). Maria é mãe de Valdo, garoto que está no ensino médio, que vem matando aula pra ficar de bobeira pela cidade com seu amigo. Valdo, em uma interpretação sucinta mas potente de Dustin Farias, quer ser rapper. Um dia, Valdo não volta pra casa, e a busca de Maria por seu filho começa.
Simplicidade cirúrgica
O filme é um retrato muito naturalista na vida de uma mãe da periferia. Sem glorificação, sem fetichização, com uma cara da vida como ela é. Burlan traz também a beleza e a dureza da cidade de São Paulo como ela é, a grande coadjuvante de Marcélia. A trilha sonora é em parte composta por raps que são de uma contundência poética que orquestra nenhuma poderia imprimir. Ouvir esses raps vindos de Valdo no desenrolar do filme se torna especialmente brutal, e mostra como cada vida perdida era uma pessoa com aspirações, talentos, e vivências únicas.
É um filme brutal sem ter uma gota de sangue. A violência é a das instituições, do cotidiano, da pobreza, tudo em um lugar só. É uma experiência difícil e enfurecedora, mas de extrema importância.
A morte normalmente tem cor e/ou CEP
“A ditadura nunca acabou. A ditadura só vai acabar com o fim da polícia militar. Porque ela é muito presente dentro das favelas e das periferias.” Essa é a frase dita por uma das mães de um grupo de mães cujos filhos perderam a vida ou desapareceram nas favelas e periferias. De acordo com o Atlas da Violência, em 2019, 77% das vítimas de homicídio no país foram pessoas negras, ou seja, uma taxa de 29,2 mortes por 100 mil habitantes. Em comparação, a taxa entre não negros é de 11,2 por 100 mil habitantes. Adicionalmente, a população da favela é predominantemente negra: enquanto representam 55% da população total do país, as pessoas negras representam 67% da população nas favelas, de acordo com um estudo do Instituto Locomotiva.
No entanto, apesar de tocar nas questões raciais, o filme de Burlan, homem branco que cresceu na periferia, se dispõe a mostrar que a violência está muito presente também para quem é pobre, e não só para quem é negro. Uma cena muito representativa de ambas as temáticas é quando Valdo e seu amigo são abordados por dois policiais. Seu amigo, jovem negro da periferia, está com documentos em mão e comportamento submisso, enquanto Valdo, jovem branco da periferia, não está com seus documentos e está desafiando a polícia. Essa cena por si só retrata como pessoas negras precisam tomar 10 vezes mais cuidado em toda sua existência do que pessoas brancas. Ao mesmo tempo, essa cena também mostra que a violência policial é direcionada aos pobres como um todo. Se for uma pessoa pobre e negra então, as estatísticas estão aí para contar essa história.
O fantasma da ditadura
Também presentes no filme estão as famílias que buscam até hoje seus entes desaparecidos durante a ditadura no Brasil. De acordo com um relatório da Comissão Nacional da Verdade, 191 pessoas foram mortas, 33 outros corpos foram encontrados, e 210 continuam desaparecidas até hoje. Voltando à citação da seção anterior, em “A Mãe”, as famílias da ditadura e as famílias da periferia compartilham da dor indescritível de perderem ou não poderem enterrar seus entes queridos por causa da violência policial direcionada e desmedida.
Tendo em mente que, com a instalação de câmeras de corpo na polícia militar de São Paulo, o índice de abordagens letais caiu em 72%, a citação se torna ainda mais urgente. E mostra, também, que é possível atuar sem matar – afinal, os índices de crime não se alteraram de maneira significativa no mesmo período.
Considerações finais
“A Mãe” é um filme essencial para lidar com o passado e presente do nosso país. É essencial para mostrar o quanto as mães sofrem e lutam por seus filhos em situações desfavoráveis. Não tem nada como o amor de mãe. E é essencial, por fim, para ilustrar que cada vida perdida inutilmente era uma pessoa única, com sonhos e vidas inteiras pela frente que foram interrompidas arbitrariamente.
Como mensagem final, deixo uma linda cena do filme:
“”Poeta é gente estudada né?”
“Ó, é e não é
Tem poeta de tudo quanto é tipo viu
Tem poeta que não sabe das letras, não estuda, não lê, estuda estuda mas não lê e não escreve, é como se ele tivesse nascido com as palavras dentro dele””.
“A Mãe” estreia no dia 10 de novembro nos cinemas.
Filme: A Mãe Elenco: Marcélia Cartaxo, Dustin Farias Direção: Cristiano Burlan Roteiro: Ana Carolina Marinho, Cristiano Burlan Produção: Brasil Ano: 2022 Gênero: Drama Sinopse:Uma mãe solo, que vive na periferia com seu único filho, não o encontra em casa ao voltar do trabalho. Depois de uma busca incessante, ela descobre que o adolescente foi morto pela polícia e seu corpo está desaparecido. Começa aí uma viagem vertiginosa pelo direito de enterrar o corpo do filho. (Sinopse oficial). Classificação: 12 anos Distribuidor: Cup Filmes Streaming: Não Nota: 8,0 |