Qual é o propósito de se eternizar uma história de fracasso? É verdade que o cinema sempre teve uma relação com essas narrativas. Mais recentemente, com o discurso meritocrata neoliberal se transformando em mantra do capitalismo tardio, a ostentação desses fracassos como cicatrizes de guerra que engrandecem a glória do sucesso se tornou o padrão de quem vende essa jornada do herói fabricada – muitas vezes em papéis vividos por Will Smith se me permitem a brincadeira. A produção latina Morte a Pinochet (Matar a Pinochet), que chega ao circuito de cinema brasileiro, narra um fracasso real, mas seu propósito não se assemelha em nada com o dessas outras histórias e é nisso que mora seu triunfo.
A morte que Pinochet merecia?
Para quem não sabe, Augusto Pinochet foi o terrorista institucional e ditador que atuou como principal responsável por um dos regimes totalitários mais sangrentos da história moderna. Traidor profissional, em poucos dias foi de comandante em chefe do Exército do Chile a articulador do golpe de Estado que terminaria com a morte do então presidente democraticamente eleito, Salvador Allende – que o havia nomeado para o cargo -, e iniciaria uma ditadura militar assassina que duraria cerca de 17 anos.
É triste pensar que essa contextualização seja tão necessária para os cinéfilos nascidos após os anos 2000, especialmente no Brasil, onde até poucos meses um presidente era capaz de tecer impunemente homenagens a torturadores. E é sob esse terreno duro de desolação que Morte a Pinochet se ergue com tanta força.
Em 2006, 16 anos após o fim de seu governo, Pinochet morreria em um hospital vítima de uma parada cardíaca e sem jamais ser punido pelos mais de 50 mil assassinatos e desaparecimentos que estima-se que ocorreram durante o regime ou nem mesmo pelas 3.197 vítimas reconhecidas pela Comissão da Verdade do Chile. Porém, em 1986, no auge do terrorismo institucional chileno, um grupo civil revoltoso pegou em armas e tentou dar a Augusto Pinochet o fim violento que ele parecia merecer. É essa história que a história de Pablo Paredes, Juan Ignacio Sabatini e Enrique Videla se propõe a eternizar.
Um plano que fracassou?
A história nos prova que o plano da Frente Patriótica Manuel Rodríguez falhou, Pinochet não foi assassinado. Contudo, enquanto acompanhamos Tamara/Cecília – a protagonista de múltiplas identidades vivida por Daniela Ramírez – e seus cumplices antes, durante e depois da execução do atentado somos convidados a reflexão.
Por mais verossímil que Morte a Pinochet seja, não se trata de um documentário. Assim, os roteiristas e o diretor podem se entregar à exposição mais poética do que Tamara, Ramiro (Cristián Carvajal), Sacha (Gastón Salgado) e os demais precisam sacrificar para colocar o plano em prática. Durante os pouco mais de 70 minutos de filme, eles queimam pontes com suas famílias, com seus empregos, com seus mundos prévios e, no fim, o que lhes sobra?
Aos poucos, percebemos nas sutilezas da obra que a narrativa alterna entre dois tempos, passado e presente. Na medida em que nos aproximamos do desfecho trágico do plano do grupo civil armado, o tom do filme se torna cada vez mais melancólico. E, ao mesmo tempo em que percebemos que não há mais retorno para os revoltos, também nos perguntamos: por que se revoltar?
Apenas o início do triunfo
É evidente que a ditadura do Chile não era o desejo absoluto do povo chileno, que a ditadura no Brasil não era unanimidade entre os brasileiros e que, evidentemente, nem todos os alemães era nazistas. É difícil encarar a tarefa árdua de assumir para si a responsabilidade de se levantar contra essas injustiças e os personagens de Morte a Pinochet se perguntam se “vale a pena” mais de uma vez. Para todos os efeitos, pelo menos ao explorar as motivações de Tamara e levemente as de Sacha, podemos notar a dimensão da empatia e do amor que move o grupo.
Inclusive, esse talvez seja o principal ponto fraco da obra. Consideravelmente curto – o que também é um refresco em uma época na qual séries de streaming têm 10 ou mais episódios com cerca de uma hora e meia de duração -, o filme poderia ter se dedicado apenas um pouco mais a mergulhar nos dilemas pessoais de alguns dos personagens que integraram o plano. Com isso, talvez a conexão com o espectador pudesse ser mais poderosa e não depender tanto de alinhamentos políticos e ideológicos.
Ainda assim, o filme nos faz lembrar que mesmo escapando do atentado em 1986 e de ter morrido de causas naturais antes de ser condenado em 2006, Pinochet viu seu governo sair do controle diante de uma forte oposição interna. Em 1988, o povo votou contra a permanência do ditador no poder e um ano mais tarde voltou a ter um presidente democraticamente eleito.
Assim como Morte a Pinochet sugere, apesar de mal sucedido, o plano da Frente Patriótica Manuel Rodríguez foi uma peça importante na engrenagem – senão a mais importante -, que colocaria o desejo de justiça e liberdade do povo chileno em movimento. Vale refletir ainda que ao ser assassinado, Pinochet poderia ter se tornado um mártir e fortalecido a ditadura militar, mas ao invés disso, mesmo que impune, foi atirado à lata de lixo da história como era minimamente merecido. Por tudo isso, Morte a Pinochet eterniza um fracasso, mas, na verdade, representa o triunfo do povo chileno sobre o período mais sombrio de sua história, nos inspirando a seguirmos o mesmo caminho.
P.s.: Em uma época em que filmes de heróis de fantasia transformaram o recurso das cenas pós-créditos em um artifício imprescindível da produção cinematográfica, Morte a Pinochet também dedica um breve trecho para heróis reais. Fique até o fim.
Filme: Morte a Pinochet (Matar a Pinochet) Elenco: Daniela Ramírez, Cristián Carvajal, Gastón Salgado, Juan Martín Gravina, Héctor Aguilar Direção: Juan Ignacio Sabatini Roteiro: Juan Ignacio Sabatini, Pablo Paredes, Enrique Videla Produção: Chile Ano: 2020 Gênero: Ação, Aventura, Drama Sinopse: Chile, setembro de 1986. Tamara, comandante do grupo guerrilheiro comunista Manuel Rodríguez Frente Patriótica, e seus camaradas de luta se propuseram a derrubar o regime militar instalado em 1973, assassinando o ditador Augusto Pinochet.. Classificação: 16 anos Distribuidor: A2 Filmes Streaming: Indisponível Nota: 8,7 |