CRÍTICA – O HOMEM CORDIAL

CRÍTICA – O HOMEM CORDIAL

Para mim, o aspecto mais interessante de “O Homem Cordial” é que quase toda narrativa se passa durante uma única noite. Um fio de tempo que o espectador desenrola desde a cena do show até o momento em que os personagens principais são cercados pela polícia — uma cena, aliás, bem construída, marcada tanto pela violência psicológica quanto física. Toda essa série de acontecimentos vividos apenas numa noite da vida de Aurélio (Paulo Miklos) tem o poder de prender a atenção da audiência. E esse, sem dúvida, é o maior mérito do longa-metragem.

Já do ponto de vista do espaço, temos um deslocamento que vai do centro até a periferia da cidade de São Paulo, marcando, assim, uma primeira e bastante significativa contraposição dentro do discurso político do filme. O centro como espaço da indiferença e da injustiça, da classe média predominantemente branca. A periferia como espaço do encontro, da solidariedade e da união de todo tipo de gente. Há pessoas de todas as cores no bar do Béstia, personagem interpretado pelo rapper Thaíde.

Essa contraposição entre os espaços traz a reboque outras contraposições: ricos versus pobres, brancos versus negros, homens versus mulheres etc. Se o filme tratasse de cada uma delas com o rigor e a profundidade devidas, poderia, sim, ser um excelente filme, mas as trata com certa superficialidade e maniqueísmo, dando corda para uma polarização reducionista que deveríamos todos estar lutando para superar. E isso é o que o filme tem de pior: seu discurso político simplório. Além disso, tem um bom mocismo em “O Homem Cordial” que incomoda quem espera mais dele. Aliás, essa marca do bom mocismo parece atravessar toda a produção da O2 Filmes.

Confesso que fico um pouco confuso toda vez que vejo Paulo Miklos (o eterno titã) atuando. É difícil dissociar o ator do grande músico que ele é. Não faz muito tempo, assisti à primeira temporada de “Manhãs de Setembro”, série protagonizada pela cantora Liniker. Na série, há uma suspeita de que o personagem de Miklos está com princípio de Alzheimer. A memória fraca, então, o transforma num sujeito um tanto parvo. Lá ele está bem. Aqui em “O Homem Cordial” cheguei até a pensar que fosse o mesmo personagem igualmente aparvalhado. Em “Manhãs de Setembro”, assim como em “O Homem Cordial”, Paulo Miklos interpreta músicos. Tenho, então, uma suspeita: o titã tem atuado na zona de conforto dele. E isso afeta sua performance, que, no momento, é apenas mediana. O mesmo vale para Béstia. Além da canastrice, só consigo enxergar o rapper e apresentador Thaíde nele.

A cena final é uma grata surpresa. Saí da projeção um pouco incomodado com ela. Achando um tanto tosca. Mas depois de um tempo remoendo a imagem do rosto machucado de Aurélio — marca evidente da violência sofrida    entendi a força do deboche que há na sua concepção. A volta cínica à normalidade numa cena trivial de um programa bobo de televisão. Assim é o Brasil. Um episódio de violência se sobrepondo a outro num fluxo ininterrupto, sem fôlego, sem tempo de lembrar, mas apenas de esquecer.

Uma última inquietação. A polícia é uma corporação feita de homens e mulheres. Tem gente boa lá dentro e tem gente muito malvada e desonesta. Isso também vale para médicos, engenheiros, advogados, professores, cineastas etc. Não consigo entender porque o cinema brasileiro em geral insiste em representar a polícia como vilã, sempre muita violenta e injusta. Com os pés fincados no chão, tento imaginar São Paulo (pra ficar apenas na cidade onde moro) sem ela.


Filme: O Homem Cordial
Elenco:  Paulo Miklos, Dandara de Morais, Thaíde
Direção: Iberê Carvalho
Roteiro: Pablo Stoll Ward, Iberê Carvalho
Produção: Brasil
Ano: 2019
Gênero: Drama
Sinopse: Aurélio Sá (Paulo Miklos) é o vocalista de uma banda de punk rock que tem sido sistematicamente perseguido devido à morte de um policial, na qual ele estaria envolvido. Apesar das constantes ameaças, Aurélio sempre recusou ter qualquer responsabilidade no ato. Ao tentar fugir de manifestantes, ele conhece uma jornalista (Dandara de Morais) que deseja não apenas ouvir o lado do cantor, mas também contar com sua ajuda para encontrar o pequeno Matheus, um garoto que está desaparecido desde a confusão.
Classificação: 14 anos
Distribuidor: O2 Play
Streaming: Indisponível
Nota: 6,4

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