CRÍTICA – O DEUS DO CINEMA

CRÍTICA – O DEUS DO CINEMA

A linguagem cinematográfica é capaz de abrigar qualquer história e fazer seu público se encantar com seus modos de contá-la. Em O Deus do Cinema (Kinema no Kamisama), o diretor de 91 anos Yoji Yamada faz uma homenagem à essa arte que é uma das mais completas que existem. O filme de 2021 foi um dos escolhidos para ser exibido na inauguração do Sato Cinema, em 16 de julho, no bairro da Liberdade, em São Paulo e estará em cartaz por mais algumas semanas.

Algo que chama a atenção logo à primeira vista em O Deus do Cinema é o seu enredo. Filmes sobre filmes são sempre uma ótima pedida e aqui não é diferente. Ao utilizar do recurso da metalinguagem, a obra nos conta a história de Goh, um senhor nos seus 70 e tantos anos viciado em corridas de cavalos e álcool. De início, não conseguimos entender a ligação entre esse personagem e o cinema em si, porém aos poucos a narrativa vai se consolidando e passamos a entender sua trajetória até o ponto de início do filme.

A apresentação do núcleo familiar do protagonista é através da visita de um agiota que busca o pagamento de uma dívida de Goh. Sua única filha e sua esposa, em uma jogada desesperada, anunciam que irão confiscar sua aposentadoria e todo o dinheiro que ele conseguir em seu emprego de meio-período. Um termo que tenho ouvido bastante ultimamente é utilizado, inclusive, em um diálogo de Goh com sua filha: Ikigai, que não tem uma tradução direta para o português, mas que se relaciona com uma razão de/para viver. Goh utiliza o termo para dizer que apostas e bebida são o seu Ikigai.

Buscando dar sentido novamente à vida de seu pai, sua filha lhe manda assistir filmes, seja em casa ou no cinema, e assim nos é revelado que Goh costumava ser um diretor-assistente em sua juventude. É nesse ponto que a magia do cinema começa a acontecer. Ao assistir um filme no qual havia trabalhado, o olhar da atriz na grande tela do cinema revela o reflexo de Goh como um erro que não fora corrigido na edição e assim, em uma tomada maravilhosamente gravada, somos transportados para o passado e conhecemos seu eu jovem, interpretado por Masaki Suda.

No passado do personagem somos apresentados à sua verdadeira essência, que de alguma forma se perdeu durante os anos seguintes. A partir dessa parte, O Deus do Cinema se torna uma grande homenagem ao Cinema, com direito a referências ao grande cineasta japonês Yazujiro Ozu e seu método peculiar de dirigir seus atores. A construção do filme dentro do filme acende, em Goh, a chama para criar seu próprio longa metragem e a discussão sobre os clichês presentes nos gêneros já existentes instiga no jovem cineasta a criação de um roteiro bastante inovador e criativo.

A inserção de uma espécie de triângulo amoroso com o protagonista confronta, de forma sutil, sua própria insatisfação com o melodrama dos filmes da época. A magia aqui está em colocar Goh sempre no centro de situações que lembrem algum gênero do cinema. Os trejeitos empregados na interpretação dos atores também nos faz sentir como se de fato estivéssemos assistindo a um clássico filme antigo japonês.

Algo que pode incomodar um pouco na narrativa de O Deus do Cinema é o fato do personagem de Goh não ser tão bem construído. Seu amor pelo cinema é totalmente válido e crível, porém em todos os outros aspectos, sua existência parece não ter um sentido. Acredito que talvez esse seja o ponto em que o filme de Yamada deseje tocar no espectador.

Assistimos a ele reagindo as situações em sua vida e é naquelas relacionadas a sua profissão e vocação que vemos todas as suas emoções em tela. Masaki Suda desempenha muito bem o papel do jovem Goh, cheio de incertezas sobre o mundo ao seu redor, exceto o cinema. Além de Kenji Sawada, que interpreta o protagonista na versão idosa, o elenco da terceira idade também oferece interpretações marcantes e emocionantes.

A narrativa de “salvação” através do cinema é muito bem empregada ao se utilizar de elementos clássicos e modernos na narrativa do filme de Yamada. O personagem do neto (Oshiro Maeda), que inicialmente não parece agregar tanto ao enredo, se revela de uma grande importância para a jornada de Goh. Ao colocar em cena Goh e esse personagem muito mais jovem trabalhando juntos em um roteiro, o diretor abraça a tradição e o futuro, entregando um enredo emocionante e cativante.

As cenas finais de O Deus do Cinema, que fazem referência direta ao filme Era uma vez em Tóquio (Tokyo Monogatari, 1953) de Yazujiro Ozu são carregadas de emoção e da magia do cinema, completando o filme de maneira agradável e satisfatória e trazendo uma assinatura à bela carta de amor à Sétima Arte escrita por Yoji Yamada.


  Filme: Kinema no Kamisama (O Deus do Cinema)
Elenco: Kenji Sawada, Masaki Suda, Nobuko Miyamoto, Mei Nagano, Shinobu Terajima, Keiko Kitagawa, Yojiro Noda, Nenji Kobayashi, Oshiro Maeda, Lily Franky.
Direção: Yoji Yamada
Roteiro: Yoji Yamada, Yuzu Asahara, Mara Harada
Produção: Japão
Ano: 2021
Gênero: Drama
Sinopse: Goh é um apostador apaixonado, mas um pai desocupado, e tanto sua esposa Yoshiko quanto os familiares desistiram dele. No entanto, existe uma coisa pela qual Goh sempre se dedicou profundamente: filmes. Ele e Terashin, dono de um cinema especializado em clássicos, são velhos amigos desde os tempos em que trabalhavam num estúdio. Na juventude, Goh e seus colegas passavam cada momento perseguindo seus sonhos, cercados por grandes diretores e estrelas famosas que representavam a era de ouro do cinema japonês. Entretanto, quando Goh e Terashin se apaixonaram pela mesma garota, as rodas do destino entraram em colapso.
Classificação: 14 anos
Distribuidor: Sato Company
Streaming: Indisponível
Nota: 7,7

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