Orson Welles era um gênio do cinema e nos presenteou com filmes impressionantes e, talvez, o maior de todos eles tenha sido, justamente, Cidadão Kane (1941) que, no dia 05 de setembro de 2021, completou 80 anos de sua estreia nos cinemas estadunidenses.
Recentemente um outro cineasta, David Fincher, apresentou sua obra chamada MANK que, discutia, principalmente, sobre a autoria do roteiro do filme Cidadão Kane que, de forma oficial é creditada para Herman J. MANKiewicz juntamente com Welles, mas que neste filme de 2020 – que ganhou o Óscar de Melhor Direção de Arte e Melhor Fotografia – tenta convencer que Mankievicz foi a única mente por trás do roteiro e que Welles teria se aproveitado de uma situação envolvendo poder, fama e status.
A verdade é que tal discussão acaba reduzindo o filme, já que uma antipatia pelo diretor, por parte de algumas pessoas, foi gerada, logo criando um distanciamento entre o público e a obra. E o que Cidadão Kane não merece é esse tipo de burburinho em relação às mãos que o escreveram.
Este clássico do cinema é considerado como uma enciclopédia de técnicas tamanha a riqueza que este longa de quase 2 horas possui. Um roteiro que aparenta ser simples, mas que navega por muitos gêneros e cria uma infinidade de problemáticas, sobretudo, na vida do protagonista Charles Foster Kane. Protagonista este que é baseado na vida do magnata da imprensa estadunidense William Randolph Hearst que, inclusive, financiou movimentos de boicote ao filme, conseguindo com que o longa não tivesse êxito no ano de sua estreia.
O que talvez o publico daquela época não soubesse é que Cidadão Kane iria ser relançado, praticamente, uma década depois e seu sucesso seria solidificado nesta que chamamos de sétima arte.
Dentre as tantas técnicas utilizadas neste filme, uma delas é a narrativa não linear que já fica evidente quando o filme começa pela morte do protagonista (Não considero nenhuma informação dada aqui, sobre esse filme, como spoiler, uma vez que, como citei no primeiro parágrafo, Cidadão Kane está completando 80 anos de sua estreia, ou seja, tempo suficiente para que o mundo inteiro tenha o assistido ao menos uma vez). Este tipo de narrativa é uma técnica, atualmente, corriqueira, mas que para aquela época era uma grande novidade e uma grande aposta, já que o publico não estava acostumado com aquele tipo de linguagem. No entanto ainda que fosse inovador, não era, de fato, algo difícil de consumir, uma vez que tantos outros artifícios foram inseridos para facilitar o entendimento da trama, como por exemplo os diálogos diretos sem que nada ficasse nas entrelinhas.
Outro ponto importante a se destacar do roteiro é o uso de um MacGuffin, elemento muito utilizado por Hitchcock na década de 30 e que, aqui, se tornou não só o movimentador da trama, como seguiu no imaginário das pessoas, década após década, como uma grande dúvida sobre o que, realmente, significava isto na história. Muitos se sentiram como o Sr. Thompson, sem essa resposta, mas com a clareza de que deveria ser algo muito importante para Kane.
Com a morte de Kane, todos os jornais iniciaram suas corridas para falar desse gigante que construiu um verdadeiro império da imprensa nos Estados Unidos e com 12 minutos de filme, ao fim de uma apresentação-teste de uma matéria sobre Kane, já sabíamos, ainda que de forma superficial, tudo o que ele havia conquistado, suas extravagâncias e seus casamentos. Entretanto para aqueles jornalistas ainda não era o suficiente. Não poderiam tratar a morte de alguém como Charles Foster Kane desta forma singela. Precisavam de algo maior. Tinha que haver algo por trás da última palavra dita por Kane antes de morrer: “Rosebud”.
É através desse pretexto que vamos sendo apresentados a personagens importantes na vida de Kane e, pelos relatos deles, sob uma visão muito particular de cada um (Thatcher, Bernstein, Leland e Susan), conseguimos fazer um desenho mais completo de quem foi Charles Foster Kane. O ritmo pode soar cansativo para alguns, em um primeiro momento, já que, basicamente, temos uma repetição de cenas em que o Sr. Thompson vai atrás das fontes que podem entregar-lhe o que tanto procura saber. Mas o uso dos flashbacks nos remetendo à vida de Kane, nos coloca frente a frente com o astro desta obra.
A atuação do próprio Welles é suficientemente enérgica para não deixar o mais sonolento espectador piscar os olhos. Mesmo não sendo um filme de grande ação, o seu ritmo cadenciado se preenche com Welles em cena. E grande parte disso tem a movimentação de câmera como responsável, principalmente nos ângulos que são escolhidos para filmar cada cena, conseguindo demonstrar, apenas com essas posições, ideias como uma grandiosidade do personagem, o vazio de um espaço, uma superioridade imposta em cena e até a de perda configurada em uma pequinês do protagonista, como fica claro em uma cena que remete à crise de 29, na qual estão os personagens Thatcher, Bernstein e o próprio Kane. E o nome a ser reverenciado é o de Gregg Toland, diretor de fotografia, que aqui assume como o grande responsável, juntamente com Welles, das técnicas como o uso da profundidade de campo e das perspectivas.
Como não se encantar quando estamos assistindo o pequeno Kane brincando na neve, na área externa da pensão de sua mãe, e a câmera começa a se mover nos mostrando a parte interna da casa, colocando a Srº Mary Kane e Thatcher em primeiro plano, um pouco mais distante o pai de Kane, e ao fundo, ainda em foco, Charles Kane brincando na neve e com seu trenó? São detalhes como este e que Orson Welles não se furta de usa-los em demasia, positivamente falando, que tornam Cidadão Kane um clássico e um dos melhores filmes já feitos até hoje.
E acalentando as mentes mais ansiosas, Welles não se despede antes de nos dá um pequeno momento, mas o suficiente, do que significa Rosebud, quando na última cena é colocado um pequeno trenó para queimar, sendo objeto de descarte já que não aparentava possuir nenhum valor. Aquele trenó só tinha sentido para o próprio Kane e ninguém mais. Era este trenó com um botão de uma rosa e a palavra Rosebud escrita nele que levava Kane ao seu passado, à sua infância que fora interrompida bruscamente. E era nesse passado que ele se reconectava com o menino inocente e cheio de imaginação que um dia deixou de lado para ser um dos homens mais poderosos dos Estados Unidos.
Mas como o próprio Sr. Thompson concluiu:
“Nenhuma palavra pode explicar a vida de um homem”.
Filme: Citizen Kane (Cidadão Kane) Elenco: Orson Welles, Joseph Cotten, Dorothy Comingore, Agnes Moorehead, Everett Sloane, Erskine Sanford, Ruth Warrick, Ray Collins Direção: Orson Welles Roteiro: Herman J. Mankiewicz, Orson Welles Produção: Estados Unidos Ano: 1941 Gênero: Drama Classificação: Livre Streaming: HBO Max Nota: 8,8 |