Não sou um grande conhecedor do cinema dinamarquês. Na verdade, acho que o último filme feito no país que assisti foi o avassalador Culpa, de 2018. Entretanto, Rainha de Copas mantém a excelência desse cinema, que só me surpreende e faz crescer meu interesse. O filme é tórrido e realista. Dá aquela ansiedade de saber o que vai acontecer, mesmo que seja um pouco previsível.
O longa conta sobre Anne, uma mulher que aparentemente tem a vida perfeita: uma boa condição financeira, uma família feliz e um excelente emprego. Seu trabalho é defender crianças e jovens vítimas de abusos e violências. Nesse sentido, percebemos o quão dependente e submissa ao marido ela é. Porém, com a chegada de seu enteado rebelde em sua casa, ela embarca num jogo perigoso de sedução, tendo um caso com o rapaz, que é menor de idade. Daí surgem os grandes conflitos dessa relação, que além de ser às escondidas, é criminosa e entra em contradição com as lutas da protagonista.
O ritmo do filme é essencial para seu desenvolvimento. Inicialmente vemos a construção desse panorama aparentemente perfeito, que se destrói aos poucos com a construção da relação entre Anne e o jovem. Percebe-se que é com ele que ela se sente confortável para se mostrar como realmente é, já que é reprimida na sua vida cotidiana, colocando-se no controle, até porque ela é bem mais velha. Fica uma tensão inquietante no ar. A atuação do casal é, diga-se de passagem, excelente. É tudo muito real e compreensível, o que também é mérito do roteiro, mas os atores fazem um trabalho que é quase difícil não acreditar neles e nos seus sentimentos. O adolescente, inclusive, transmite a emoção de se sentir amado e desejado pela primeira vez na vida com essa manipulação, já que era algo que lhe faltava com a família, principalmente com seu pai.Ao meu ver, ele é o personagem mais complexo e interessante.
No caso de Anne, vemos o inadequado dilema de fazer tudo aquilo que supostamente é contra. Para mim, esse é o maior debate que o filme traz. Ela não aparenta ser uma potencial abusadora, mas é justamente quem comete esses atos tão desprezíveis. Talvez, o único erro do filme seja tratar a situação com imparcialidade, já que também apresenta justificativas para esses erros, mesmo que, independentemente de qualquer coisa, elas não existam. Esses atos possuem motivações, não justificativas. O fato dela ser uma mulher coibida pelo patriarcado é uma dessas motivações. Talvez seja a ânsia de reverter essa situação que a motive. Estar finalmente no comando, mesmo que cometa um crime que vai contra tudo que ela própria diz acreditar.
O filme possui um terceiro ato um pouco arrastado. Talvez por já imaginarmos o fim de tudo, não tendo tantas surpresas como esperávamos. Isso também reitera o tom realista trabalhado durante todo o longa. Tom esse que não se limita em diálogos e, principalmente, nas cenas mais picantes. É bastante explícito, mas não é gratuito.
Acredito que Rainha de Copas seja um filme sobre hipocrisias. Acho complicado fazer um filme assim, já que a única personagem relevante feminina, a protagonista, comete atos injustificáveis por ser vítima de um certo machismo estrutural. Pelo menos é assim que nos é fundamentado. Todavia, de qualquer maneira, é algo que poderia acontecer com nossos vizinhos, amigos ou até na própria família. Não há pudores em qualquer aspecto desse filme e, mesmo assim, nada é em vão. É trágico, mas nos envolve. Uma boa oportunidade para conhecer o cinema dinamarquês.
Filme: Rainha de Copas Elenco: Trine Dyrholm, Gustav Lindh, Magnus Krepper, Liv Esmär Dannemann, Silja Esmär Dannemann, Stine Gyldenkerne, Preben Kristensen Direção: May el-Toukhy Roteiro: Maren Louise Käehne, May el-Toukhy Produção: Dinamarca, Suécia Ano: 2019 Gênero: Drama Sinopse: Anne, uma bem-sucedida advogada, vive numa belíssima casa modernista com as suas duas filhas e o marido Peter. Quando Gustav, o filho problemático de Peter, fruto de uma relação anterior vai viver com eles, Anne cria uma relação íntima com o jovem que põe em risco a sua vida perfeita. E aquilo que parecia inicialmente um acto de libertação, transforma-se numa história de poder, traição e responsabilidade, cujas consequências são devastadoras. Classificação: 18 anos Distribuidor: ARTEPLEX FILMES Streaming: Looke Nota: 8,6 |