Filmes de vingança frequentemente desenrolam tramas complexas, enraizadas na dor, na injustiça e na busca por reparação. Ainda que essas narrativas possam prender nossa atenção, é importante notar como, em alguns casos, elas podem enveredar por uma veia que ecoa características fascistas. Ao transformar protagonistas impulsionados por tragédias pessoais em agentes de justiça independente, esses filmes muitas vezes exploram a linha tênue entre a retaliação legítima e uma visão distorcida do poder. A construção psicológica desses personagens, moldada por um desejo de retribuição implacável, muitas vezes reflete a ascensão de líderes autoritários e a erosão das instituições democráticas. Assim, enquanto os filmes de vingança podem entreter e provocar reflexões, é crucial examinar como, por vezes, eles podem inadvertidamente dar voz a elementos que ressoam com ideologias mais sombrias.
Em “Tempos de Barbárie – Ato I: Terapia da Vingança”, Marcos Bernstein se aproveita do subgênero para trazer reflexões antiarmamentistas e fazer o espectador refletir sobre o ciclo vicioso que alimenta a barbárie no território brasileiro. Na trama, somos conduzidos pela jornada angustiante de Carla, uma mãe dilacerada pela perda de sua filha, cruelmente tirada por um tiro. Diante da ineficácia policial em trazer justiça, Carla se encontra perdida em sua dor, buscando consolo em um grupo de apoio. No entanto, à medida que a impotência se transforma em fúria, Carla embarca em uma jornada movida pelo desejo de vingança contra os responsáveis pela tragédia que abalou sua família.
Iniciando com um letreiro que exibe dados estatísticos para estabelecer uma conexão entre a flexibilização das leis de porte de armas e o aumento das mortes por arma de fogo, “Tempos de Barbárie – Ato I: Terapia da Vingança” se encontra na necessidade de contextualizar seu discurso. Todavia, o que deveria ser uma ponte para apresentar a mensagem principal da trama acaba se tornando uma muleta para sustentar o discurso ambíguo do filme. Isso ocorre porque, em certos momentos, as ações passionais de Carla, justificadas pela dor, se transformam em uma fetichização da arma e do desejo de humilhação dos agressores que passa a possuir Carla.
Ainda mais problemático é quando o filme cria um paralelo entre a terapia em grupo que a protagonista Carla participa e a terapia que ela cria de forma singular ao sequestrar os responsáveis pela morte de sua filha. Marcos Bernstein não parece saber muito bem qual é o foco de sua narrativa. Se, na abertura do filme, o letreiro denuncia a facilitação da venda de armas, os dois últimos atos abandonam tal tese e adotam a questão do contrabando e do tráfico de armas, dois problemas distintos, embora tragam resultados semelhantes. No entanto, a película não se aprofunda em nada disso, desenvolvendo apenas a psique da personagem principal e tropeçando profundamente quando os personagens secundários argumentam contra a justiça pelas próprias mãos, limitando-se a clichês baratos e frases genéricas, e pior, o discurso do filme acaba defendendo-a de suas ações. Isso causa a nítida impressão de que, sem o letreiro inicial, “Tempos de Barbárie” é um filme antagônico à impressão inicial.
Mesmo com alguns tropeços em seu discurso, a direção de arte e a escolha da paleta de cores no filme “Tempos de Barbárie – Ato I: Terapia da Vingança” desempenham um papel significativo na criação de atmosferas emocionais e simbólicas ao longo da narrativa. A alternância entre as tonalidades azuladas e amareladas constitui uma escolha visual interessante, contribuindo para a transmissão das emoções e do ambiente que envolve a protagonista Carla. A paleta azulada, que remete à frieza e tristeza, é eficaz ao comunicar o estado emocional doloroso e desolado de Carla logo após a perda de sua filha no início da projeção.
A transição para uma paleta mais amarelada e com penumbra cria uma sensação de perigo, adicionando uma camada de tensão à trama. Essa escolha de cores contribui para representar o desequilíbrio e a instabilidade que caracterizam a jornada de Carla. A presença limitada de luz no ambiente não apenas intensifica a sensação de ameaça, mas também simboliza o distanciamento da realidade que Carla experimenta à medida que se envolve mais profundamente em seus atos de vingança. O uso do amarelo escuro ao longo da narrativa serve como uma metáfora visual do afastamento de Carla de sua essência e do significado em sua vida. À medida que a trama avança, essa tonalidade de amarelo gradualmente ganha uma nuance avermelhada, ressaltando a presença constante da violência que agora faz parte de sua jornada.
Outro ponto alto do filme ocorre quando, após enfrentar uma série de adversidades, Carla chega a um ponto de desespero que a leva a tentar tirar a própria vida. Essa ação trágica resulta em uma bala alojada em sua cabeça, deixando marcas físicas e emocionais indeléveis. Embora ela sobreviva à tentativa de suicídio, as consequências são profundas. A decisão agora é difícil: ela precisa se submeter a uma cirurgia para remover a bala, porém, essa intervenção médica carrega um dilema agonizante. A cirurgia traz consigo o risco real de apagar parte de sua memória, incluindo lembranças preciosas de sua filha. Por outro lado, escolher não passar pela operação pode significar um risco direto à sua vida. A bala alojada na cabeça não é apenas uma cicatriz física; ela se torna um símbolo poderoso de toda a trajetória de Carla daqui para frente. Essa marca física reflete a transformação interna que ela experimentou – suas memórias da filha se tornaram entrelaçadas com a violência que ela sofreu e a violência que ela mesma incorporou em sua busca por vingança. A bala na cabeça serve como um lembrete constante de seu sofrimento e das escolhas que a conduziram até esse ponto representando a interseção entre dor, trauma e busca por justiça.
“Tempos de Barbárie – Ato I: Terapia da Vingança” mergulha em um terreno complexo ao explorar os desafios da vingança e da justiça em um cenário de crescente barbárie. No entanto, o filme enfrenta uma luta interna entre sua intenção de transmitir uma mensagem clara e sua tendência a se perder em um discurso ambíguo. Ao longo da narrativa, a direção de arte e a escolha da paleta de cores oferecem uma exploração visual intrigante das emoções, mas não é suficiente para sustentar a obra. Enquanto o longa busca abordar temas profundos e morais, sua execução revela fraquezas, especialmente quando perde totalmente seu foco.
Filme: Tempos de Barbárie – Ato I: Terapia de Vingança Elenco: Cláudia Abreu, Júlia Lemmertz, Alexandre Borges, Kikito Junqueira, Pierre Santos, Adriano Garib Direção: Marcos Bernstein Roteiro: Marcos Bernstein, Victor Atherino, Paulo Dimantas Produção: Brasil Ano: 2023 Gênero: Thriller, Drama Sinopse: Em Tempos de Barbárie – Ato I: Terapia da Vingança, acompanhamos uma mãe, a advogada Carla (Cláudia Abreu), que vê a filha ser baleada durante uma tentativa de assalto. A menina fica em estado grave. Sem respostas, Carla tenta seguir a vida buscando ajuda em grupos de apoio. Mas sem conseguir aceitar o destino da filha e a falta de soluções por parte da polícia, transforma a busca por justiça em uma procura por vingança. No balanço entre a vida e a morte a qualquer minuto, Carla decide fazer a justiça com as próprias mãos e testar o seus próprios limites. Até onde ela será capaz de ir? Classificação: 14 anos Distribuidor: Globo Filmes Streaming: Não disponível Nota: 3,0 |