27° CINE PE – Dia 04 (Curtas)

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CORAÇÃO DA MATA, de Camila Martins

O filme “Coração da Mata”, sob a direção de Camila Martins, oferece uma visão vívida da cidade de Nazaré da Mata, famosa por seu maracatu. A narrativa inicia com uma apresentação da cidade, suas ruas e os icônicos bonecos de Maracatu, elementos que imediatamente mergulham o espectador no contexto local. A cineasta habilmente nos leva a observar mulheres costurando esses bonecos e outras cenas cotidianas que contribuem para a imersão na vida da comunidade.

No entanto, o que diferencia este documentário de outros é a abordagem de Camila Martins. Em vez de simplesmente manter a câmera parada e permitir que as mulheres falem por si mesmas, ela as coloca para narrar em voz over, intercalando com cenas de suas rotinas. Essa escolha cria um vínculo mais profundo entre o espectador e as personagens, pois ouvimos suas histórias enquanto as vemos interagir com suas famílias, comunidades e o ambiente ao seu redor. Esse é, talvez, o grande trunfo do filme, pois nos permite compreender melhor a difícil rotina dessas mulheres e a importância do maracatu em suas vidas, especialmente o “Coração Nazareno”, produzido inteiramente por mulheres.

O filme destaca a capacidade das mulheres de conquistar autonomia e liberdade por meio do maracatu, desafiando estereótipos de gênero e mostrando que o papel da mulher vai além das paredes de casa. Camila Martins explora os sonhos, conexões culturais e perspectivas de três gerações de mulheres, e é impossível não mencionar Luiza, uma jovem com o sonho de ser veterinária. Ao questionar esses sonhos ao longo das gerações, o filme revela a estratificação social que muitas vezes leva ao abandono de aspirações pessoais. No entanto, a paixão de Luiza por cuidar dos animais e sua determinação são comoventes.

O clímax do filme, quando somos levados à apresentação, é particularmente impactante. A câmera utiliza a técnica de slow motion, conferindo um significado e uma sensação de catarse àquele momento. Além disso, ao capturar o olhar dos homens enquanto observam o desfile, o filme subverte as expectativas tradicionais, mostrando que as mulheres têm muito a oferecer e que agora é a vez de todos reconhecerem isso.

“Coração da Mata” é um documentário envolvente que não apenas retrata a vida das mulheres em Nazaré da Mata, mas também celebra sua resiliência, paixão e determinação através de uma narrativa habilmente tecida por Camila Martins.

por Hugo França.

 

ALTO DO CEU, de Leo Tabosa

A frequência sonora é uma constante na vida do trabalhador, especialmente para aqueles que utilizam o transporte público no Recife como parte de sua rotina diária. O filme começa com uma cena notável, que talvez seja a mais significativa: Um plano geral da protagonista enquanto espera na estação “Alto do Céu”, situada a 47 minutos do Recife, de acordo com o Google Maps. Logo abaixo da placa, que sublinha o nome do local, a protagonista espera a chegada do veículo, que é apenas mais uma etapa de sua rotina. No entanto, essa monotonia é interrompida por um momento humano dentro do metrô: ela começa a chorar no canto do vagão. Enquanto se encolhe, exausta e em silêncio, busca conforto em um espaço repleto de pessoas. Mesmo com o volume de transistores, ninguém a olha, ninguém pergunta como ela está, refletindo a solidão de sua vida rotina. 

Dirigido por Leo Tabosa, com direção de fotografia a cargo de Alex Costa, o curta apresenta momentos intrigantes que ilustram o silêncio que envolve a personagem enquanto ela segue sua rotina. Apesar da presença de outros personagens, que desempenham papéis de apoio, a protagonista está tão imersa em seu esgotamento que seu ato mais frequente ao longo das 24 horas é chorar. No entanto, esse choro não é estridente; trata-se de um lamento silencioso que não incomoda ninguém e passa despercebido por todos. 

A câmera se aproxima do rosto da atriz Geraldine Maranhão, gerando efeitos intrigantes que parecem distorcer seu mundo e seus pensamentos. Mesmo quando não está chorando, sua linguagem corporal revela uma pessoa que sofre, incapaz de expressar seus desafios de forma verbal. Considerando sua origem pernambucana, nossa mente começa a explorar diversas possibilidades que poderiam explicar seu desconforto. No entanto, em uma cena crucial em que ela busca a ajuda de um padre, tudo fica claro e, ao mesmo tempo, tristemente simples: a personagem é mais uma vítima da violência doméstica que aflige Pernambuco.

Em seguida, a personagem resume seu relato emotivo com palavras buscando orientação e expressando seu desejo pela libertação do seu marido. No entanto, o padre, em sua zona de influência na igreja, minimiza a situação, alegando que a mulher está exagerando e que deveria dar prioridade ao casamento. Diante dessa resposta, seu sofrimento é relativizado, quando comparado ao de outras pessoas que sofreram ao longo da história do cristianismo. O padre sugere que, se um santo como X suportou tanto sofrimento, por que ela não pode suportar um marido que a agride diariamente?

Retornamos à locação inicial, o metrô, e depois seguimos de volta à casa da protagonista. Ela se encaminha para o local onde costuma fazer suas orações, mas os sons cotidianos continuam a ecoar ao seu redor. Com os olhos fechados, segura seus santos nas mãos e sussurra uma prece. Seu comportamento é marcado pelo desespero, e, aparentemente, ainda não há ninguém em casa. Com os olhos fechados, ela deixa um de seus santos cair no chão e, em meio a um choro mais intenso, pede auxílio. 

A obra encerra em aberto, sem saber as características visuais do seu marido ou dos seus atos, mas pelo seu desespero, ela aguentou por muito tempo sem chorar. 

por Wandryu Figuerêdo.

 

FILHOS AUSENTES, de Jansen Barros e Virgínia Guimarães

Na 27ª edição do Cine PE, a seleção curatorial pareceu favorecer obras que exploram a partida e o retorno a espaços físicos ou lugares pessoais. Em “Filhos Ausentes”, dirigido por Jansen Barros e Virgínia Guimarães, os arquivos da região de Santa Cruz do Capibaribe, tanto pernambucanos quanto municipais, servem como base para abordar memórias que não podem ser completamente recriadas devido às transformações significativas na região e na perspectiva da narrativa ao longo do tempo. Após um longo período afastada, uma mulher volta à sua terra natal para se despedir do pai. À medida que é envolvida por sentimentos ligados à memória afetiva da cidade, um diálogo entre essa despedida e o reencontro se entrelaça, culminando em uma decisão impactante. 

A diretora, que também desempenha um papel dentro do filme, direciona sua câmera para seu próprio olho, empregando uma técnica de animação para criar uma maquiagem que se transforma em diversas formas distintas. Assim como sua cidade natal, Virgínia também passou por mudanças em sua perspectiva, que só podem ser expressas por meio dessas técnicas que desafiam a realidade. Seus sentimentos e conexões emocionais estavam profundamente ligados às imagens da feira que, agora, encontram-se abandonadas e realocadas em outro cenário. A renomada feira de Santa Cruz foi simplificada para se tornar o “Moda Center”, com as características e traços regionais da cidade sendo substituídos por elementos mais modernos.

A antiga cidade de Santa Cruz do Capibaribe ainda persiste, mas apenas nas imagens de arquivo, com uma estética que lembra muito as filmagens em Super 8. Para aqueles que não são de Pernambuco, essa é uma oportunidade de apreciar uma rica coleção de filmes em Super 8. Na sua tentativa de reconexão com a cidade, mais focada na memória de seu pai, a protagonista compreende que não pode reconstruir os momentos significativos de afeto e intimidade familiar que já passaram. O máximo que Jansen Barros e Virgínia Guimarães podem fazer é criar um vídeo-ensaio para preservar a lembrança de seu pai e imaginar como ele participaria de tudo aquilo. Esse território em constante transformação, com traços de modernização, certamente será objeto de questionamento nos anos vindouros, à medida que a cidade avança para uma nova fase, frequentemente chamada de “evolução urbana”. No entanto, isso não representa o apagamento do que a cidade já foi, mas sim uma construção contínua. Seu pai e as saudades que ele deixou permanecerão, agora eternizados em um filme.

por Wandryu Figuerêdo.

 

CÉU, de Valtyennya Pires

O documentário paraibano “CEU” é uma obra cinematográfica que mergulha profundamente em um ambiente singular: uma fábrica de peças de barro que serve de cenário para narrar a história de uma comunidade e suas pessoas. Desde o início, a película adota um tom descontraído que nos transporta para o coração dessa comunidade, a Quilombola Serra do Talhado Urbano em Santa Luzia. É nesse contexto de trabalho e vida que o filme começa a nos apresentar Céu, a figura central que dá nome ao documentário.

O filme nos revela Céu de maneira gradual, permitindo que a personagem se desvende diante dos nossos olhos, através das diversas entrevistas. A cada momento, sua importância na vida da comunidade fica mais evidente. Conforme a narrativa avança, “CEU” também mergulha nas raízes culturais dessas pessoas, explorando questões como a religião e tradições locais, como a noite do 30 de maio. Através dessas explorações, o filme nos faz sentir parte dessa comunhão e compreender a profundidade da ligação entre Céu e sua comunidade.

No entanto, o documentário reserva uma reviravolta emocional que nos deixa profundamente tocados. Ele prepara cuidadosamente o terreno para revelar o que aconteceu com Céu, fazendo com que experimentemos a mesma sensação de impotência que a comunidade sentiu diante dos acontecimentos. Narrativamente, “CEU” é uma obra maravilhosa. É uma celebração da humanidade, da comunidade e da capacidade do cinema de nos aproximar de realidades distantes e nos conectar com pessoas que têm muito a nos ensinar.

por Hugo França.

 

ÚNICA SAÍDA, de Sérgio Malheiros

Em ‘Única Saída’, sob a direção do talentoso Sérgio Malheiros e com roteiro assinado pelo próprio Malheiros em conjunto com o renomado Edmilson Filho, conhecido por seus trabalhos em ‘Shaolin do Sertão’ e ‘Cine Hollywood’, somos mergulhados em um thriller intenso. O filme nos apresenta um enredo instigante desde os primeiros segundos, quando dois homens são vistos descendo escadas desesperadamente, com um tiro ecoando logo em seguida. É admirável observar a habilidade de Sérgio Malheiros em criar essa atmosfera de suspense, envolvendo o espectador.

A montagem do filme também é igualmente eficiente ao intercalar a traição da esposa com a entrada do pastor. Embora seja uma técnica comum para construir suspense, Malheiros a executa muito bem, acentuando o ritmo à medida que os cortes se aproximam e a trilha sonora composta por Rodrigo Pereira, Luciano Figueiredo e Jessica Nunes intensifica a tensão.

Edmilson Filho surpreende com sua atuação impressionante. Conhecido principalmente por suas incursões no humor, ele demonstra sua versatilidade como ator, transmitindo com maestria a instabilidade do personagem, tornando-o ainda mais ameaçador.

Mas a maestria de Malheiros não se limita a imergir o público na trama; ele também tece uma série de simbolismos ao longo da narrativa. Um exemplo marcante é a maneira como o diretor estabelece relações entre objetos por meio de zooms sugestivos. A bíblia e uma arma, ambos ganhando destaque em closes, remetem a uma reflexão sobre a aliança entre a religião cristã e o culto às armas no contexto brasileiro contemporâneo. Essa conexão é reforçada por meio da constante presença de símbolos religiosos e citações bíblicas, sempre associadas à figura armada do protagonista.

E quanto ao desfecho do filme, evitarei dar spoilers, mas é seguro afirmar que ele se revela intrigante do ponto de vista narrativo. Mesmo que alguns espectadores possam antecipar alguns elementos, o filme consegue proporcionar um desfecho surpreendente

‘Única Saída’ é uma obra que não apenas entretém, mas também convida à reflexão sobre temas sociais pertinentes. Uma ótima estreia de Sérgio Malheiros na direção.

por Hugo França.

 

EU NUNCA CONTEI A NINGUÉM, de Douglas Duan

“Eu nunca contei a ninguém” é mergulha nas profundezas da emoção humana com uma delicadeza e sensibilidade que tocam o coração de qualquer espectador. Este filme em stop-motion, realizado com a textura suave de algodão, revela-se um convite à contemplação e à reflexão, uma valsa melancólica que nos envolve desde o primeiro acorde da trilha sonora, composta com maestria, unindo harpa e piano.

A história se desenrola através dos olhos de uma criança, um protagonista encantador que nos cativa imediatamente. Este ponto de vista infantil nos é entregue não apenas visualmente, com enquadramentos que nos colocam na altura da criança, mas também através de seus pensamentos e questionamentos, que se tornam uma trilha sonora de reflexões profundas sobre a vida, a morte e a honestidade dos adultos em relação a si mesmos, em relação aos próprios sentimentos.

Por trás dessa animação encantadora, há uma homenagem sincera do autor ao seu avô, uma jornada emocional que nos permite ver a morte através dos olhos de uma criança. O filme nos presenteia com momentos de consolo e tristeza, pois não nos poupa das emoções intensas que surgem ao lidar com a perda. A maneira como o avô explica sua partida iminente à criança, usando metáforas como “mudar para outra casa” e “fingir que está dormindo”, é dilaceradora.

Uma cena específica, onde a criança visita o avô no hospital, é particularmente tocante. A conversa entre os dois, a relutância da criança em deixar o avô e o fechamento da porta em seu rosto são momentos que deixam os olhos do espectador embaçados de lágrimas.

“Eu nunca contei a ninguém” é um filme sobre luto, narrado da perspectiva de um adulto que se esforça para compreender e processar a dor da perda como uma criança o faria. Ele questiona por que os adultos carregam o peso da tristeza e por que a vida parece tão adversa para eles. A cena final, onde a criança se despede do avô falecido e pede que ele não abra os olhos, é um momento de aceitação profunda, transmitido com maestria pela direção. A câmera se distancia da criança, criando um poderoso senso de despedida, encapsulando a beleza e a dor da jornada emocional que é “Eu nunca contei a ninguém”.

por Hugo França.

 

FOSSILIZAÇÃO, de João Folharini

Numa praia completamente deserta, com apenas o som suave das ondas quebrando na costa, uma garota chamada Elisa começa a cavar um buraco na areia. Sua avó, Silvia, observa curiosamente e questiona a criança sobre por que ela está fazendo isso em vez de brincar na água. Elisa vira-se, olha para a avó e responde que está em busca de algo que está perdido há anos: um fóssil. Enquanto muitas garotas gostam de brincar com bonecas ou correr livremente pela praia, Elisa está mais interessada em desenterrar um objeto que está enterrado sob a areia, onde milhares de pessoas já passaram. Seu desejo persiste ao longo de todo o filme, mas, em vez de simplesmente focarmos no objeto que ela está tentando encontrar, podemos enxergar essa atividade como uma busca por algo ainda mais profundo e distante. 

Ao longo de toda a obra, acompanhamos apenas as duas personagens imersas naquele ambiente. Embora os enquadramentos possam variar, eles são utilizados principalmente para destacar os desenvolvimentos das cenas e revelar detalhes que ainda não foram explícitos na narrativa. Os planos mais abertos, como os planos gerais, são empregados para enfatizar a magnitude da conexão entre essas duas mulheres de gerações completamente diferentes em contato com a natureza circundante. Quando a câmera muda para planos mais próximos, especialmente focando em seus rostos, testemunhamos uma comunicação que reflete a melancolia compartilhada por essas duas mulheres, que enfrentaram recentemente desafios dolorosos: uma perdeu a mãe e a outra perdeu uma filha.

Assim como o mar, ambas estão passando por transformações energéticas em sua relação com o mundo. A garota que proclama, “Eu não sou mais uma criancinha”, é a mesma que, minutos depois, questiona, “A mamãe também vai virar um fóssil?”. São momentos de vulnerabilidade que a garota está enfrentando, e sua avó, seu pilar de apoio, também está atravessando uma jornada semelhante. No entanto, em vez de buscar fósseis, a avó busca o silêncio e contempla as ações de sua neta, que também evoca lembranças de sua filha. 

O filme, impulsionado por gestos íntimos, gradualmente revela que a mãe de Elisa e a filha de Silvia nunca deixaram de existir. Elas não precisam se transformar em fósseis para serem reconhecidas como seres reais. Elas existiram e continuam vivas nos corações das duas, mesmo numa praia deserta, ao som suave da maresia.

por Wandryu Figuerêdo.

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