Acompanhamos, em primeira pessoa, os passos de uma das personagens nesse contexto, enquanto a câmera se movimenta como um ser vivo, adaptando-se com improvisos realistas. “Chumbo”, dirigido e roteirizado por Severino Neto, aborda a perspectiva feminina daqueles que trabalharam na Alcoopan, uma empresa denunciada por práticas trabalhistas semelhantes à escravidão por quase duas décadas. Apesar de esse fato ser inaceitável para nós, privilegiados, Severino explora uma série de depoimentos de moradores que foram esquecidos junto com o caso. Hoje, sem a usina, a comunidade luta para sair da zona de vulnerabilidade. “Chumbo” é um retrato do Brasil que levanta questões profundas sobre essa realidade e como a ausência de oportunidades em um país tão desigual pode tornar ambígua a perspectiva do trabalho escravo.
É interessante observar como a obra, após coletar depoimentos impactantes sobre a Alcoopan, brinca com a perspectiva de que se trata apenas de um documentário que relatará os acontecimentos. A princípio, parece que o filme vai abordar as lutas contra o racismo, sexismo, xenofobia e opressão. No entanto, o longa-metragem muda de direção ao mostrar as condições atuais das protagonistas, que permanecem esquecidas naquela pequena cidade. Enquanto os homens e filhos têm a oportunidade de deixar o local, elas não desfrutam desse privilégio, devido a uma série de complexas questões estruturais que não podem ser simplificadas em um único texto.
Para romper com a abordagem estética tradicional de documentário, a obra incorpora uma sequência animada que narra a história de um homem que tirou a própria vida devido ao intenso sofrimento na região, mesmo antes da chegada da Alcoopan. Essa animação revela as condições precárias de vida que assolavam a região naquela época. A pequena cidade do Mato Grosso era mais conhecida por suas tragédias do que por suas noites de celebração. Quando a fábrica chegou, promovendo slogans de modernização, muitos abraçaram a ideia, mesmo que isso implicasse em submeter-se a condições de trabalho semelhantes à escravidão.
Além disso, muitas das protagonistas questionam até mesmo a eficácia dos órgãos que fecharam a empresa. Se o trabalho era comparado à escravidão, por que tudo parece agora pior do que antes? O desenvolvimento é inexistente, a cidade permanece vazia, e as oportunidades só podem ser encontradas fora de suas casas. O senso de pertencimento e a identificação com a cidade desapareceram, como se tivessem sido esquecidos, assim como seus próprios rostos.
Entretanto, Chumbo saiu do CinePE sem conquistar nenhum troféu, figurando entre os menos reconhecidos pelo júri. Enquanto isso, “Agreste,” dirigido por Sergio Roizenblit, gerou controvérsias devido à escolha de seu protagonista para interpretar um homem trans em “Transfake.” Pessoalmente, concordo com a decisão do júri.
Apesar de “Chumbo” apresentar propostas interessantes com duplos sentidos, o filme, em minha opinião, foi prejudicado por escolhas pequenas, mas significativas, como os cortes para entrevistas estilizadas em preto e branco e o uso frequente da câmera lenta, que evoca a estética dos videomakers. Embora não tenha sido o destaque do festival, nem um dos melhores filmes da programação, acredito que a falta de reconhecimento em sua premiação foi um pouco injusta.
Filme: Chumbo Elenco: Romeu Benedicto, Jucineia Francisca da Silva, Severina Maria da Silva, Jusiane Luiza de Almeida Lima, Maria Conceição de Campos Silva Direção: Severino Neto Roteiro: Severino Neto Produção: Brasil Ano: 2022 Gênero: Documentário Sinopse: Por quase 20 anos, os moradores da comunidade quilombola do Chumbo foram usados como mão de obra por uma usina de álcool, que mantinha métodos considerados análogos à escravidão. O caso Alcoopan representa os vários elementos que compõe o quadro do trabalho escravo contemporâneo, que na maioria das vezes são invisíveis. O filme é narrado pela perspectiva de mulheres que foram condenadas a trabalhos “forçados” apenas por serem pobres e a viver o restante de suas vidas com problemas de saúde e sem assistência. Hoje, sem essa usina, a comunidade luta para sair da zona de vulnerabilidade. Chumbo é um retrato do Brasil, que levanta questões profundas sobre essa realidade e como a ausência de oportunidades em um país tão desigual, pode tornar dúbia a perspectiva do trabalho escravo. Classificação: Não informado Distribuidor: Não informado Streaming: Indisponível Nota: 7,5 |