CRÍTICA – AS DUAS FACES DA FELICIDADE

CRÍTICA – AS DUAS FACES DA FELICIDADE

Le bonheur ou Girassóis embrulhados

Uma das coisas que mais me encanta no cinema da Agnès Varda é a maneira que ela consegue transformar um pequeno acaso diário ou um mero acontecimento cotidiano em cinema. O que faz grandes filmes não é necessariamente a história deles, e sim como ela é destrinchada e transpassada por meio de imagens para nós. Dito isso, me impressiona como Varda transforma a história desse filme em uma crítica sobre o voyeurismo escancarado que os homens possuem sobre as mulheres.

Um filme pitoresco do início ao fim, retrata não apenas uma família pintada dentro das três cores primárias, mas também a felicidade hedonista individual — e individualista — escolhida por um homem. O mundo vai se construir a partir do olhar desse protagonista, dessa forma, podemos dizer que François é um voyeur, porque ele que detêm o poder do olhar e possui segurança para isso. Aliás, Varda nos mostra que ele se mantêm seguro, pois, a sua segurança do olhar provêm de uma seguridade de gênero.

O filme começa quente, tons de vermelho pintam a tela banhada pelos campos amarelos de girassóis e pelo brilho do sol. Pouco a pouco vemos surgir em quadro a família nuclear perfeita e pouco a pouco avistaremos o desabamento dessa ilusão. Agnès constrói uma semântica bucólica em torno de tudo, e é possível se sentir assistindo fielmente a vários quadros de Claude Monet e Pierre-Auguste Renoir virando cinema, isso porque Varda estudou Belas Artes quando era jovem e possuía um vasto conhecimento e muita paixão por pintura. A partir disso, nossa cineasta pintora guia todas as situações vividas pelos três protagonistas, François, Térèsse e Émilie, para chegarmos a um final que é um raccord — um espelhamento — do início do filme.

Nada está inerte para a diretora que construiu a Nouvelle Vague, cada detalhe é costurado e a mise-en-scène interage e nos conta nas entrelinhas tudo o que está na cabeça do protagonista, François. As transições coloridas nos fornecem spoilers visuais do que virá, assim como os enquadramentos. É um quadro arcadista que nos fornece momentos de como é incrível o contato com a natureza, e isso está sincronicamente ligado à François e sua esposa Térèsse. Em contraponto, é a natureza estampada em vestidos, em vasos, em símbolos comerciais, que temos ligado à figura da amante, Émilie. Essa dicotomia nos atravessa e me pergunto onde e quando essa linha tênue se instaurou, sendo: o escape da pureza para o debruçamento sobre o incerto — o plástico.

“A tentação”

Térèsse e Émilie. O vermelho, o azul. O verão e o outono. A natureza e as flores em vasos. Na pintura, nós dizemos que o vermelho e o azul são “cores cromáticas análogas”, e isso me ocorreu que não é por acaso que ela faz essas escolhas. Quando juntamos as cores, nós temos o aparecimento do violeta, e se é violeta, alguém irá morrer (If it’s purple, someone’s gonna die), essa é a história do cinema. Essa é a junção que François constrói através de seu egoísmo. Quando a morte de sua esposa acontece, o violeta aparece fisicamente no filme, anteriormente o que víamos era apenas sua forma sublimada, e é na casa de sua amante que ele se desenrola, já deixando subentendido que mais uma morte acontecerá… Dessa vez não fisicamente, mas sim a morte imposta a todas as mulheres socialmente: o destino irremediável de ser “do lar”. François diz a Émilie que ela é um animal livre e selvagem, ao final ela também é aprisionada por ele.

“A noiva” Marc Chagall (1950)

É engraçado e, no mínimo, audacioso perceber o desdém que o protagonista recebe de sua diretora, suas ações são constantemente evocadas de maneiras opostas, uma utopia irônica.  Ele fica entre as duas mulheres, que figuram o fantasma e a realidade. No final, François está entre “a realidade e a ficção”, sendo tudo isso parte de sua própria ficção, inclusive a realidade. A amante precisa representar a esposa, pois, a figura feminina não possui identidade, tudo é a exibição do olhar masculino. Ela morre, contudo, a vida volta a ser o que era com o fantasma da sua esposa, performado pela amante.

Varda constrói uma perspectiva na qual o papel social da mulher é calmamente substituível. Além disso, ela também nos acrescenta que o amor não é alçado a partir de papéis sociais. O título “Le bonheur” em francês significa literalmente “A felicidade”. Apesar de gostar bem mais do título original, consigo enxergar no título brasileiro algo simbólico para traduzir esse filme, ele me diz sobre… As duas faces da felicidade de um homem, as duas faces do apagamento de uma mulher, seja ela mulher-esposa ou mulher-amante, seja ela apenas mulher.


Filme: Le bonheur (As Duas Faces da Felicidade)
Elenco: Marie-France Boyer, Marcelle Faure-Bertin, Jean-Claude Drouot
Direção: Agnès Varda
Roteiro: Agnès Varda
Produção: França
Ano: 1965
Gênero: Drama, Romance
Sinopse: François, um belo e jovem marceneiro que trabalha para seu tio, leva uma vida confortável e feliz casado com sua linda esposa Thérèse, uma costureira, com quem tem dois lindos filhos, Pierrot e Gisou. A família adora passeios na floresta fora da cidade. Embora esteja casado com a bela Thérese e ame indiscutivelmente sua esposa e filhos, François se apaixona por Émilie, uma mulher solteira que trabalha nos correios, que tem um apartamento próprio e se parece muito com Thérèse.
Classificação: 14 anos
Distribuidor: Parc Films
Streaming: Mubi
Nota: 10

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