A presença de filmes que abordam o tema da ditadura militar no Brasil é de extrema importância, pois essas produções servem como registros históricos na criação de memórias sobre esse período sombrio. Filmes com essa temática oferecem uma oportunidade única para que as gerações atuais e futuras compreendam os horrores da repressão e evitem a repetição de tais eventos no futuro. Além disso, essas obras proporcionam uma voz às vítimas e heróis anônimos que resistiram à opressão, e que por tanto tempo, mesmo depois de muitos anos após o fim do regime, foram poucas vezes ouvidas. É com esse tema tão importante que Guto Pasko faz sua estreia em longas metragens de ficção. Explorando de maneira eficaz as profundezas sombrias da ditadura militar brasileira dos anos 70, Entrelinhas segue Beatriz, uma jovem estudante de 18 anos que é brutalmente detida sob a acusação de terrorismo enquanto se dirigia ao seu primeiro dia de trabalho. Expondo não apenas a brutalidade do regime, Pasko também explora o desespero de seus pais em meio à incerteza e ao conhecimento das atrocidades que o regime militar é capaz de cometer.
Com uma atuação impressionante, Gabriela Freire, em sua estreia no cinema, se destaca com uma interpretação impecável no papel de Beatriz. Ela enfrenta o desafio de representar uma jovem vítima dos abusos e injustiças da ditadura militar, e o faz com uma maturidade surpreendente. A expressão intensa em seu olhar, consciente de sua incapacidade de enfrentar fisicamente os militares, mas ainda assim desafiadora, é um destaque notável. Sua resistência emocional diante da pressão militar não apenas contribui para a temática do filme, mas também inspira profundamente o espectador.
No entanto, a consistência das atuações deixa a desejar em alguns momentos, muito mais pela construção dos personagens do que pela performance dos atores. Enquanto Gabriela Freire oferece uma interpretação notavelmente natural e equilibrada como Beatriz, as demais performances não seguem o mesmo padrão. Especialmente notáveis são os retratos dos militares, que em muitos momentos parecem cair em uma caricatura excessiva, enfraquecendo o peso de certas ações. Enquanto em blockbusters americanos e ficções fantasiosas a caricaturização dos vilões frequentemente serve para simplificar a narrativa e incitar a torcida contra eles, em um filme como “Entrelinhas,” que busca abordar uma temática séria, essa abordagem pode, em certos momentos, reduzir a gravidade do tema, conferindo um tom mais fantasioso à trama.
Repleto de simbolismos, “Entrelinhas” emprega diversos elementos visuais de forma profunda. Já nos primeiros momentos da projeção, somos apresentados ao policial Nonato, que revela uma série de fotografias dos suspeitos. Entre essas imagens, encontra-se a foto da protagonista, Beatriz, emergindo de um líquido vermelho revelador, antecipando para o espectador a repressão e violência iminentes que aguardam Beatriz.
Conduzida de forma brilhante por Isabelle Bittencourt, a direção de arte é composta por uma paleta de cores pastéis para os objetos, combinada com a cinematografia de Alziro Barbosa, que em certos momentos se mantém estática, proporciona uma sensação de estabilidade aos ambientes, reforçando a atmosfera do filme. Do mesmo modo a reconstrução de época, que transporta o espectador para a década de 70. Contudo, é na representação das celas em que Beatriz é confinada que a direção de arte brilha com intensidade. A cela sombria e a presença de ratos criam um dos momentos mais inquietantes da obra. Complementando essa experiência, o design de som, repleto de gemidos e uma trilha sonora de suspense com notas graves contínuas, constrói uma tensão avassaladora que se alinha perfeitamente com a necessidade do filme naquele instante.
Essa cena, por exemplo, supera todas as sequências com militares que gritam e fazem seus arquétipos de vilões. Quando uma mulher grávida, ensanguentada e aterrorizada é introduzida na mesma cela que Beatriz, o impacto emocional se amplifica. Isso se deve, em grande parte, à magnífica interpretação que transmite visceralmente a agonia da situação. A tremulação nas pernas da personagem e a forma como a cena é capturada proporcionam ao espectador um momento avassalador.
Tentando transmitir o desespero das famílias cujos filhos e parentes foram sequestrados pelo regime opressivo, é notável a abordagem das cenas em que o pai aparece. Embora essas cenas desempenhem um papel importante na narrativa, elas se destoam de maneira notável das cenas que exploram o próprio desespero de Beatriz. Do mesmo modo, as sequências com militares de alta patente, que abordam a influência dos EUA no golpe militar, acabam sendo dispensáveis, não contribuindo substancialmente para o enredo e carecendo de desenvolvimento. Embora se compreenda a intenção de Guto Pasko, essa vertente da diplomacia militar não é aprofundada, o que, dada a proposta do filme, é compreensível que não seja. Por carecer de tempo de tela, essas cenas muitas vezes são inseridas sem sutileza e frequentemente sentem falta de um contexto adequado desenvolvido pelo roteiro.
“Entrelinhas” é, sem dúvida, um filme de extrema relevância. É crucial preservar a memória do período da ditadura militar no Brasil, visto que nosso acervo cinematográfico ainda é escasso em obras que abordam adequadamente esse capítulo sombrio da história. Revisitar essas memórias dolorosas é fundamental, e Entrelinhas o faz de maneira exemplar, demonstrando competência tanto tematicamente quanto formalmente.
Filme: Entrelinhas Elenco: Gabriela Freire, Leandro Daniel Colombo, Daniel Chagas, Eduardo Borelli, Mauro Zanatta, Renet Lyon, Patricia Saravy, Laís Cristina, Carlos Vilas Boas, Brenda Sodré, Leonardo Goulart, Fabiana Fereira, Maureen Miranda, Ranieri Gonzalez Nathalia Garcia, Regina Vogue, Otavio Linhares, Altamar Cezar Direção: Guto Pasko Roteiro: Guto Pasko, Rafael Monteiro, Tiago Lipka e Sebastian S Claro Produção: Brasil Ano: 2023 Gênero: Drama, Thriller Sinopse: 1970. Beatriz é uma estudante brasileira de 18 anos. Ela é detida pela ditadura militar em Curitiba e torturada por dez dias acusada de pertencer ao movimento estudantil subversivo e a uma guerrilha armada que luta contra o regime, a VAR-Palmares. Classificação: 14 anos Distribuidor: Paris Filmes Streaming: Indisponível Nota: 7,0 |
One thought on “27º CINE PE – ENTRELINHAS”