Culpa e Desejo (Breillat, 2023) nos leva a vida de Anne (Léa Drucker), uma respeitada advogada, esposa e mãe que acha sua vida entediante. Quando seu enteado, Théo (Samuel Kircher) chega em sua casa, para morar com a madrasta e o pai, Anne se encontra dividida entre a o desejo aventureiro pelo menino e a culpa pela imoralidade do ato e a possibilidade iminente de destruição de sua própria família.
O machismo nos filmes de Catherine Breillat
É possível observar um certo paralelo entre Culpa e Desejo (Breillat, 2023) — filme mais recente da diretora francesa — e Para Minha Irmã (Breillat, 2001) — possivelmente a obra mais famosa da filmografia de Catherine. Isto é, ambos os filmes trabalham com corpos jovens, ainda em desenvolvimento, sem total conhecimento sobre si mesmos. E em ambas as obras, os corpos são explorados por pessoas mais velhas dotadas de malícia o suficiente para entender completamente seus atos.
Igualmente, é triste a constatação de que, em ambos os casos, a visão da vítima é afetada por um véu de machismo constituinte da sociedade em que ela está inserida. Em outras palavras, em Para Minha Irmã (Breillat, 2001) Elena (Roxane Mesquida) sente que, por ser mulher, deve ceder aos desejos de seu namorado e se entregar ao que não quer fazer para agradar, é um fardo. Enquanto que, em Culpa e Desejo (Breillat, 2023), Théo enxerga a situação abusiva em que está inserido como uma vitória. Isto é, o “menino garanhão” conseguiu transar com a mulher bonitona. Para o homem não é um abuso, é uma conquista.
A ótica romantizadora de Culpa e Desejo
Analogamente, isso é refletido até mesmo na mise-en-scène de Breillat— termo francês utilizado para denominar a construção cenográfica de um filme. Enquanto que Para Minha Irmã (Breillat, 2001) soa quase como um filme de horror, angustiante, desesperador. Em contrapartida, Culpa e Desejo (Breillat, 2023) por momentos pode perpassar até como um filme de amor. Desse modo, existe ali uma certa romantização da relação de Anne e Théo.
Por mais que essa romantização possa ser percebida como uma certa glamourização do relacionamento para alguns espectadores, para mim não soou assim. A saber, para conceber uma visão diferente desse glamour, é necessário perceber como a diretora articula a visão de seus personagens sobre aquelas relações.
A diferença no olhar
Ou seja, em Para Minha Irmã (Breillat, 2001) tanto Elena quanto Fernando (Libero de Rienzo), acima de todos os atos carnais e a paixão adolescente, contemplam a toxicidade e a negatividade presente ali. Assim sendo, Fernando possui (e expressa) noção sobre a malícia de seus atos. Do mesmo modo, Elena se sente mal pelo que faz (mesmo que tente se convencer do contrário). Dessa maneira, os dois personagens entendem como aquela relação os afeta negativamente.
Em contrapartida, em Culpa e Desejo (Breillat, 2023), tanto Anne quanto Théo encaram a situação de forma positiva. Por mais que ambos expressem um medo com relação a isso, é um medo muito mais exterior. Não é um medo deles se prejudicarem através do abuso, mas um medo dos outros descobrirem sobre eles. Enquanto que, para os dois, aquela violação é algo bom.
Como dito anteriormente, para Théo, ele está “se dando bem”; está transando com uma mulher bonita e experiente, ele é o garanhão. Para Anne, ela encontra no enteado uma espécie de antítese de seu marido. Enquanto Pierre representa a entediante e não-atraente segurança dela, Théo é a libertadora aventura. Théo é rebelde, fuma, se veste descoladamente, tem tatuagens, não está nem aí para nada. Dessa maneira, ele é tudo que ela precisa para fugir do marasmo de sua vida.
Culpa e Desejo e a armadilha da romantização
Desse modo, é até bem simbólico observar como a maneira com que a diretora conduz as cenas de sexo em ambos os filmes se desdobra. Isto é, as cenas de estupro em Para Minha Irmã (Breillat, 2001) se assemelham muito tecnicamente as cenas em de sexo consentido (entre Anne e seu marido Pierre) de Culpa e Desejo (Breillat, 2023). Em contraste, as cenas de abuso entre Anne e Théo, são muito mais eróticas e orgânicas.
Sob essa ótica, é fácil conceber a intenção da diretora ao, de certa forma, romantizar o relacionamento entre os dois. Não é, de modo algum, uma romantização dos atos imorais e criminosos cometidos ali, mas uma representação audiovisual da visão idealizada das duas partes. Por mais que, trabalhando sob essa perspectiva, fique arriscado ao filme cair na armadilha da glamourização daquele vilipêndio, Breillat sabe se esquivar.
Esquiva hábil de Breillat
Ou seja, por mais que as cenas de intimidade entre os dois carreguem esse quê de sensualização, os outros momentos do filme sobrepõem isso. Em outras palavras, algumas mais diretas, quando Théo e Anne não estão em seus momentos íntimos, Culpa e Desejo (Breillat, 2023) nunca deixa o espectador esquecer como aquilo ali não está certo. Dessa forma, a maneira como toda a mise-en-scène se comporta fora dos momentos a dois é diferente. Os atores expressam horror, a câmera se torna mais fria (enquanto mais intimista entre o “casal”), a trilha se aquieta. Fica todo um clima de indignação sobre a situação toda que contrasta com os momentos mais sensuais.
Afinal, acaba que essa é a grande sacada de Breillat para fazer o filme funcionar. Retratar a imoralidade daqueles atos durante todos os momentos da obra poderia não só cair em um lugar comum quanto ao assunto, mas também ficar apático. Em contrapartida, ao trabalhar as dualidades entre as óticas dos personagens principais e a do mundo ao seu redor, a diretora consegue ressaltar como aqueles atos são discrepantes entre os dois e o exterior, sem deixar de atenuar a imoralidade e a angústia daquilo que está sendo concebido.
Filme: Culpa e Desejo Elenco: Léa Drucker, Samuel Kircher, Olivier Rabourdin, Clotilde Courau Direção: Catherine Breillat Roteiro: Catherine Breillat, Pascal Bonitzer Produção: França, Noruega Ano: 2023 Gênero: Drama Sinopse: Anne, advogada e mãe, se vê em uma situação arriscada após o enteado ir morar com ela e os dois se encontrarem em um jogo de sedução. Classificação: 14 anos Distribuidor: Synapse Streaming: Indisponível Nota: 8,0 |