Aviso: o texto a seguir contém spoilers! Song Lang
Vietnã, anos 1990. Em meio à crise seguida após o fim da guerra em 1975, poucos negócios geravam frutos no país. Em Saigon, um grupo de Cai Luong – um tipo de ópera folclórica moderna vietnamita – se apresenta em um teatro local. Por trás disto, suas dívidas com a agiota da região levam a uma visita de seu cobrador Dung ao teatro, onde é recebido pelo ator estrela da ópera, Lihn Phung. Esse breve encontro entre personalidades distintas é o mote da narrativa de Song Lang (2018), escrito por Leon Le e Minh Ngoc Nguyen e dirigido por Le.
Song lang é o nome do instrumento tocado no Cai Luong, porém, para além disso, a narração do protagonista Dung afirma que o song lang não é somente um instrumento, mas que incorpora em si o Deus da música. A narrativa, que é introduzida a partir de um dos seus segmentos finais, segue de perto este personagem de moralidade duvidosa. Seu emprego atual de cobrador de dívidas não carece de muita reflexão, ele cobra e as pessoas lhe pagam, não há drama ou poesia em sua vida ordinária e um tanto violenta.
Entre flashes de seu passado e segmentos de sua vida atual, Song Lang segue a vida deste protagonista, Dung (Liên Binh Phát) e seu ódio pela ópera vietnamita. A narrativa que se desenha aos poucos vai abordar a raiz do ressentimento desse personagem ao mesmo tempo em que, mesmo que intimamente, ele esteja recuperando o sentimento que há muito guardava em relação à arte do teatro.
Ainda que este seja um filme sobre a relação breve e improvável entre Dung e Lihn Phung (Isaac), o protagonista real de sua história é o Cai Luong. As sequências onde trechos da ópera são exibidos são muito bem orquestradas e fazem com que o espectador se sinta imerso em um teatro vietnamita dos anos 1990. O enredo da peça que está em cartaz se mostra ligado à história dos protagonistas e, a medida em que os atos da peça vão se passando, podemos vislumbrar o desfecho do enredo entre Dung e Lihn Phung.
Há muitos gêneros dentro da narrativa de Song Lang que se sobrepõem e, acredito, o objetivo do diretor e roteirista não era exatamente o de “encaixotar” seu filme dentro do gênero LGBT+. É claro que há um vislumbre de romance dentro de sua história e o motivo da aproximação dos dois protagonistas. Porém, para além disso, há uma tentativa de redenção para um deles através do seu amor pela ópera, antes de seu – possível – amor pelo outro homem. É claro que ambos estão interligados, uma vez que um devolve ao outro o sentimento há muito guardado sobre a ópera.
Talvez o maior ponto deste filme seja o que já havia mencionado antes: seu protagonista não é Dung ou Lihn Phung, mas o Cai Luong. É através dele que toda a sua história se desenha e, através das canções preenchidas de tristezas e traições de todos os tipos, temos um quadro completo de um pequeno espaço de tempo em um pequeno lugar de Saigon. É através da ópera que somos capazes de compreender toda a história destes personagens e suas jornadas para chegarem ao ponto em que estão no início do filme. De uma forma ou de outra, o Cai Luong os une, e do mesmo modo, os separa.
Song Lang é um filme bastante melancólico e ao mesmo tempo aconchegante. Seus espaços vazios e silêncios dentro da narrativa levam o espectador a uma identificação imediata com o personagem de Dung, ainda que este esteja de certa forma em uma posição de “vilão” dentro desta história, é tão humano quanto qualquer outro personagem apresentado. Os erros cometidos por ele em relação a sua própria vida só mostram o quanto esse personagem está perdido em meio a um cenário que não planejou, mas que foi o que lhe restou. A dualidade de sua personalidade é abordada de maneira simples ao mostrar que a mesma pessoa que é capaz de queimar os figurinos de uma ópera ou mesmo espancar um devedor, é também alguém que passa a maior parte de seu tempo livre jogando videogames ou chorando no terraço do prédio onde vive.
De muitas maneiras, o encontro breve entre Dung e Lihn Pung é capaz de transformar o rumo de suas vidas. O vislumbre de esperança para um deles é a desgraça para o outro. A todo momento, é possível recordar as palavras do mentor de Lihn Pung quando diz que ele deve se apaixonar para entender o personagem que interpreta na ópera, ou mesmo suas próprias palavras, quando menciona que “um grande artista precisa entender o luto.” Entender o amor e a morte é um sentimento que o jovem artista ainda não compreendeu por completo em sua breve existência.
O desfecho de Song Lang é brutal e carregado de uma emoção que vai além de sua própria narrativa. Ali, naqueles minutos finais, entendemos todo o esforço da direção em contar uma história que, independente do final que fosse apresentado, não traria alívio ao espectador. Ainda que ambos os personagens tenham tido, embora por pouco tempo, a expectativa de um futuro mais brando, ações passadas sempre voltam para cobrar seu preço. Tentar apagar o passado é, infelizmente, tentar apagar uma história que se enraizou em outras e, a partir do momento em que os problemas de um não concernem mais somente a ele, o contexto muda e a tentativa de “redenção” se mostra vã. Acredito que toda a narrativa do filme de Leon Le caminha nessa direção e não há surpresas quanto ao final de sua história, ainda que ele seja capaz de atingir em cheio o espectador.
Assim como em uma ópera Cai Luong, a tragédia é o centro de uma narrativa que desde o início estava fadada a um triste fim. Ao mesmo tempo em que o filme de Leon Le cai em um “padrão” de filmes queer sem final feliz, ele entrega um desfecho satisfatório e de alguma forma esperado. Apelar para um final feliz, acredito, estragaria toda a experiência de assistir a esse filme.
Filme: Song Lang Elenco: Liên Bihn Phát, Isaac, Phuong Minh, Vu T. Le Thi, Kim Long Thach. Direção: Leon Le Roteiro: Leon Le, Minh Ngoc Nguyen Produção: Vietnã Ano: 2018 Gênero: Drama Sinopse: Um laço inesperado se forma entre um cobrador de dívidas do submundo e um artista de Cai Luong tendo a Saigon dos anos 1990 como pano de fundo. Classificação: 14 anos Distribuidor: Studio 68 Streaming: FILMICCA Nota: 8,5 |