CRÍTICA – DUNA: PARTE DOIS

CRÍTICA – DUNA: PARTE DOIS

A regular anticlimática primeira parte da adaptação do romance Sci-fi de Frank Herbert, que estreara em 2021 simultaneamente com os streamings, foi, de certo modo, um retrocesso ao que se via do diretor Denis Villeneuve. Ademais do potencial das salas de cinema pós pandemia, e das virtudes visuais do filme, o longa continha um final abrupto, composição autoral destoante dos trabalhos anteriores do Villeneuve, e um tom aventuresco sem o adicional de suas costumeiras obras densas e carregadas de simbolismo. Duna: Parte Dois

A sequência até tem um primeiro ato morno, que sugere a repetição da dinâmica vista 3 anos atrás. Para nossa sorte, Duna: Parte 2 logo revela seu caráter completamente distinto – mais raivoso e irrefreável. E agora sim: um filme verdadeiramente épico e sagaz, sem as burocracias e a ausência de impacto antes apresentadas.

Se antes víamos até mesmo certo didatismo na episódica primeira parte, nos resta agora é apreciar uma obra verdadeiramente de ação, que equilibra quase que perfeitamente a escala dramática interna – que desta vez é bem mais profunda e eficaz, com a escala ótica de tom épico de gigantismo. E mais: se o filme de 2021 se arrastava e se vendia por uma contemplatividade plástica, agora somos bombardeados por informações e choques imparáveis e frenéticos. Ao término da sessão, é como se tivéssemos vivido uma vida inteira.

Dito isso, existe, portanto, um abismo entre as duas partes. O desequilíbrio não seria tanto caso o intervalo entre ambas houvesse sido menor, já que em certa perspectiva, a Parte Dois eleva a primeira, dando sentido às lentas alucinações que só faziam “prometer” algo, e rimando semanticamente com a progressão vagarosa dos personagens, que passam aqui por impactantes transformações.

Juntamente ao diretor de fotografia Greig Fraser, foi instituída em Duna a concepção de uma dramaturgia de câmera, onde, em planos pouco autorais e com o fundo completamente embaçado, diálogos (insossos, diga-se de passagem) se desenvolvem e almejam acentuar a narrativa. Certamente um dos pontos mais blasés de Duna, com o resultado quase novelesco, este detalhe é quase que inteiramente corrigido na sua Parte Dois, já que deliberadamente temos um Villeneuve mais direto e sem enrolação: a segunda metade do filme literalmente não pára.

Ainda no fotografia de Greig Fraser – realmente, a escala é de tirar o fôlego. Diferente do seu primeiro trabalho com o Villeneuve, onde tudo era acinzentado e sem vida, aqui finalmente aderimos à forte saturação e ao fluorescente. Mas permanece a lógica de fundo embaçado e monocromia, que definitivamente não remete aos lúcidos retratos do antigo parceiro do diretor, Roger Deakins, sendo importante ressaltar essa diferença entre os dois fotógrafos.

É até inesperado, inclusive, a utilização de câmera tremida em Duna: Parte Dois. Em especial nos 40 minutos iniciais de projeção, uma estética para televisão pode ser lembrada. Mas quem sabe, esse processo de desvínculo estilístico do Villeneuve tenha sido importante para a estabilização de uma obra tão ágil, imponente e marcante, já que o ritmo elaborado de forma impecável pelo sofisticado montador Joe Walker, gera uma grandeza que, para funcionar, precisa se desvincular do pseudo perfeccionismo do primeiro capítulo.

Em uma mixagem harmônica entre ação de primeiro nível, com uma grande variedade e maior qualidade de senso de direção, e apelos sentimentais muitíssimo bem carpintados, temos esta como a chave para o que pode ser posteriormente chamado de obra-prima. Thimotée Chalamet passa por uma densa evolução, lidando com a transformação de Paul Atreides e sua relação de poder e autoridade como um Messias, dando-lhe camadas profundas de amadurecimento e severidade, que entrelaçam um dos argumentos do autor: “Cuidado com os Heróis”.

E lógico, não há como a jornada ser épica sem um vilão realmente tenebroso. Em um casting absolutamente genial, Austin Butler encarna o psicopata Feyd Rautha de forma escabrosa. É um contraponto imponente na jornada messiânica de Paul. Sua presença é tão forte que quase reduz o barão Harkonnen de Stellan Skarsgard – outro que vive uma transformação de poder em uma magnífica interpretação. Nessas mudanças, o mesmo ocorre com a Lady Jessica de Rebecca Ferguson, que em uma forte transe Benne Gesserit, emerge em uma posição espiritual que exige outro tipo de atuação. O elo com sua bebê é belíssimo – o teor fantasioso da comunicação entre as duas é instigante, e a decisão estética de “filmar” o feto em gestação é sagaz.

O elo de Zendaya, como Chani, também se fortalece. O peso de sua proximidade com Paul é consentido de forma além das expectativas. Christopher Walken, como Imperador, é uma presença luxuosa no filme, ainda que sem enormes influências. Florence Pugh opera de forma charmosa e morna. E pra fechar, Javier Barden se diverte até não poder.

Em sua eufórica ópera espacial, Villeneuve opta também por uma gameficação. São diversas as perspectivas do campo de visão de armamentos, ou sobrevôos de naves através de um jogo de mira. É um fluxo escapista que atende perfeitamente, ainda mais com o prazer de testemunhar sons tão diferentes, abissais e curiosos. A construção de mundo de Duna se vale muito dessa configuração sonora única.

Ainda no aspecto guerra, um paralelo pode ser traçado com a realidade fora dos cinemas. As imagéticas de bombardeio, e a temática de destruição e genocídio de uma cultura, não podem ser desassociadas com o que ocorre nesse momento na faixa de Gaza. As semelhanças existem. E em especial, um take em total destaque para uma criança com as mãos ensanguentadas, logo após um ataque destruir um templo saudoso de sua cultura à beira do extermínio, é de forte anedota para elucidarmos o quão viva está a prática de impiedosos ataques de ódio. Ainda que não tenha como se dizer se é a vida que imita a arte, ou a arte que imita a vida, esse paralelo engrandece Duna: Parte Dois.

Por fim, podemos dizer que este novo estabelecimento de Duna se apropria mais do lado imaginativo e fantasioso dos livros, do que a mais racionalista primeira parte. Seu status de obra-prima se dará pela orgânica fluência de ação, peso dramático e uma montagem elaboradíssima. Villeneuve se importa mais em o quê filmar, e não como filmar. Vemos corpos flutuantes, fantasias exageradas, equipamentos grotescos, e tudo funciona como uma fantasia de timing espetacular. A cena da batalha em preto e branco no coliseu é extraordinária pois é de uma liberdade surpreendente. Certamente, algo próximo ao que o injustiçado Alejandro Jodorowsky imaginava.


Filme: Dune: Part Two (Duna: Parte 2)
Elenco: Thimothée Chalamet, Zendaya, Austin Butler, Rebecca Ferguson, Javier Barden, Florence Pugh, Dave Bautista, Christopher Walken
Direção: Denis Villeneuve
Roteiro: Denis Villeneuve e Jon Spaiths 
Produção: Estados Unidos
Ano: 2024
Gênero: Ação, Aventura, Drama
Sinopse: Paul e sua mãe conseguem fugir do ataque em Arrakis, e unidos aos Freemen, devem evitar que um extermínio aconteça.
Classificação: 14 anos
Distribuidor: Warner Bros. Pictures
Streaming: Indisponível
Nota: 8,5

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