CRÍTICA – GARRA DE FERRO

CRÍTICA – GARRA DE FERRO

Particularmente não gosto de histórias que abordam histórias trágicas com certo misticismo. Muito se comenta, por exemplo, a respeito da “Maldição de Glee” por conta das muitas coincidências trágicas que envolveram o elenco da série. Me soa pedante, apelativo e desrespeitoso essa espetacularização causada pelo impacto da palavra “maldição”, pois no final qualquer produção que se desenvolve unicamente através deste viés termina discutindo um “nada”, uma teoria da conspiração, e se isenta da responsabilidade afetiva para com as vidas humanas e de realizar um estudo profundo, complexo e menos óbvio. Quando Garra de Ferro foi anunciado como um filme biográfico acerca dos Von Erichs, uma das famílias mais vitoriosas do wrestling numa jornada cheia de títulos e tragédias familiares, disparou um alerta vermelho quanto a uma possível abordagem problemática.

A produção se inicia com Fritz Von Erich (Holt McCallany) em seus dias de glória no ringue. Nesta breve introdução, Sean Durkin sintetiza muito dos temas tratados no filme — obsessão, sonho, família e, claro, luta livre — e em como o patriarca tem sim a família como prioridades mas sua obsessão pelo wrestling profissional que o move adiante. Anos mais tarde, vemo-nos já estabelecidos: Kevin (Zac Efron) é o queridinho do pai e o mais obstinado a realizar os ideais projetados nele, David (Harris Dickinson) às vésperas de estreia promissora no ringue, Kerry (Jeremy Allen White, de O Urso) é um atleta olímpico que está voltando para casa após os Estados Unidos não participarem das Olimpíadas na Rússia e Mike (Stanley Simons) é o menos preferido do pai por não seguir os padrões (físicos, principalmente) que o pai idealizava, ainda que tenham gostos em comum.

A partir dos olhos de Efron, somos guiados por este drama familiar. O diretor Sean Durkin toma bastante tempo na primeira metade do filme para nos situar dentro desse núcleo. Vemos imagens de muito companheirismo entre irmãos (seus treinos, tomando cerveja, saindo escondido para festas e, acima de tudo, se ajudando) ao mesmo tempo que constrói sutilmente uma atmosfera de opressão familiar a partir de dinâmicas cotidianas com o pai.

McCallany encarna este homem a partir de um ponto de vista que anda na linha tênue entre a representação de um homem disposto a fazer tudo pela família e um pai extremamente controlador e opressor. Gosto como o ator não leva o seu personagem, no decorrer do filme, para se transformar numa caricatura de si mesmo; como grande parte das biografias estadunidenses costumam fazer com os seus personagens “vilanescos”. Em nenhum momento ele se torna maniqueísta, tal qual o Coronel Tom Parker do Tom Hanks em Elvis, que carece de nuance. O ator abraça a humanidade falha e imperfeita para dar vida a este pai que acreditou que estava fazendo o seu melhor.

Dentro do ringue, Durkin é inteligente na forma cheia de significados em que filma as lutas. Um dos pontos mais interessantes é o isolamento dentro de um esporte amplamente calcado na resposta do público com as ações entre as quatro cordas. Em nenhum momento a câmera se direciona para rostos ou capta a reação externa, com o intuito de afirmar que mais nada importa fora dos ringues. Uma manifestação imagética de como Fritz educou seus filhos. 

O diretor de fotografia Mátyás Erdély reforça ainda mais este sentimento quando direciona um holofote ao ringue e escurece tudo ao redor. Em outros momentos ele distancia até mesmo de nós enquanto espectadores ao filmar em planos abertos.

Assim, aquele pé atrás para com a abordagem logo desaparece e observamos a profundidade temática que Garra de Ferro está nos levando. Durkin em nenhum momento tem o intuito de criar uma biografia chapa branca ou demasiadamente escrachada, e sim uma história sobre dramas reais. Tampouco ele renega que a história que tem em mãos é muito mais sobre morte, luto e derrotas do que de cinturões dourados e vitórias.

A questão metafísica da tal “maldição” que paira sobre o nome dos Von Erich é nomeada, ainda que não seja dito, mas está implícito no ar que os filhos respiram — a masculinidade tóxica. Os filhos são o tempo todo cobrados de serem os mais fortes, os mais ágeis, os mais musculosos, bonitos, viris, bem sucedidos financeiramente e com família construída, e que apenas com estes atributos e conquistas eles seriam de fato homens de sucesso. E, óbvio, que dentro do universo da luta livre. Fritz, desta forma, afasta os seus filhos de seus traços mais humanos como as imperfeições, faltas de confiança, medos, sonhos próprios e suas fragilidades, tornando-os meros personagens e não os preparando para aquela escuridão fora do ringue e das lutas roteirizadas.

Toda essa opressão em torno da figura masculina começa a dilacerar a família; um a um. É interessante como a partir das perdas Durkin reforça ainda mais a questão da masculinidade tóxica a partir das reações dos irmãos: tristes e com raiva, mas nunca chorando. Como se o pai tivesse negado o direito deles chorarem. Ao colocar a morte dos seus personagens sempre fora de cena, Durkin aproveita para direcionar seu olhar para as atuações de seus personagens. A partir desta escolha criativa, o diretor cria oportunidades para seu elenco estrelado e principalmente Zac Efron, no até então melhor papel de sua carreira, brilharem. 

São nos olhos marejados, no semblante raivoso e nas mudanças na forma que Kevin se relaciona com o seu pai e com as pessoas ao seu redor que Efron leva seu personagem a se transmutar enquanto homem. Neste aspecto, tanto Durkin quanto Efron, desenvolvem este personagem a partir de uma jornada de enfrentamento, estabelecida nas entrelinhas logo no começo do filme: seja na cena em que Kevin treina correndo — como se estivesse tentando fugir — em outro momento ele reforça este mesmo ponto quando Kevin ricocheteia nas cordas do ringue, de um um lado para o outro — novamente, em alusão ao ato de fugir das amarras, em ser livre.

No ponto de vista de desenvolvimento, percebemos, em uma de suas primeiras conversas com Pam (Lily James), sua futura esposa, que a principal característica de Kevin é “cuidar”. Ou seja, apesar de ser um filho exemplo e que respira essa masculinidade plástica, o seu principal traço de personalidade é o “ato de cuidar” — qualidade esta que, de um ponto de vista arquetípico, é comumente atrelada a personagens femininas nos cinemas. Isto mostra como, apesar de contaminado pelo ambiente tóxico, ele nunca deixou de ser ele mesmo, postulando a sua função de enfrentar e de que, por mais “perfeito” e idealizado que fosse aos olhos do pai, eles não eram iguais; nem de perto.

A partir da síndrome de irmão mais velho, recai nos ombros de Kevin a responsabilidade e a necessidade de quebrar este ciclo — e livrar a sua nova família da maldição —, numa jornada que envolve uma queda de braço entre a reverência e a gratidão que tinha em relação a seu pai e de responsabilizá-lo pela criação do ambiente tóxico que ele criou e destruiu a vida dos irmãos. Além de impedir que a maldição continuasse fazendo vítimas, essa luta também envolve liberdade, para enfim chorar por seus irmãos e seguir adiante.


Garra de Ferro - Poster
Filme: Garra de Ferro (The Iron Claw)
Elenco: Zac Efron, Holt McCallamy, Jeremy Allen White, Harris Dickinson, Stanley Simons, Maura Tierney e Lily James
Direção: Sean Durkin
Roteiro: Sean Durkin
Produção: EUA
Ano: 2023
Gênero: Drama
Sinopse: A trajetória conturbada dos inseparáveis irmãos Von Erich, que fizeram história no competitivo mundo da luta livre profissional no início da década de 1980.
Classificação: 14 anos
DistribuidorA24
Streaming: Indisponível
Nota: 9,0

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