Antes mesmo que, em uma determinada sessão no dia 13 de junho, fosse falado de uma semelhança entres os filmes exibidos naquele dia, era possível notar, incluindo até mesmo o filme de abertura, uma perspectiva feminina em todas aquelas obras. Neste primeiro dia de festival, propriamente dito, os filmes assistidos foram: Sem Chão (1982) da Mostra Olhares Clássicos, Os Paraísos de Diane (2024) da Mostra Competitiva Internacional e Tijolo por Tijolo (2024) da Mostra Competitiva Nacional. Três filmes que convergem muito no sentido de trazer mulheres que lutam para tomar as rédeas de suas próprias vidas. 13° Olhar de Cinema
SEM CHÃO (1982)
Filme estadunidense dirigido por Kathlenn Collins e um dos primeiros longas de ficção realizados por uma diretora afro-estadunidense. Sem Chão conta a história de Sara (Seret Scott) e Victor (Bill Gunn), um casal negro, que vivenciam as trivialidades de qualquer outra relação. É bem verdade que, sob o olhar político da diretora, há especificidades aqui que nutrem a discussão sobretudo em relação ao lugar que Sara, uma mulher negra, deve ocupar.
Já de início o filme dá uma alfinetada na pressão social em cima da mulher sobre ser, ou não, casada. Neste momento do filme Sara recebe diversos elogios, mas o fato de ser casada parece ser o maior deles. Como se isso qualificasse a mulher. Como se isso fosse um movimento natural, mas que poucas teriam essa sorte. O conflito aqui se dá justamente pelo fato de que Sara é uma mulher negra, que foge um pouco dos estereótipos, cinematográficos até, de uma subalterna ou serviçal. Ela é uma mulher letrada, estudiosa e altamente competente em sua área. Para além destas qualificações é também, ao menos pelos alunos, reconhecida e muito estimada.
Do outro lado temos o desenho de dois personagens: seu marido Victor e sua mãe, vivida pela atriz Billie Allen. Estes personagens são artista e veem esta como a única forma de ascensão para as pessoas negras. Enquanto Victor é um pintor, sua mãe fora uma grande atriz. Eles não só compartilham da mesma visão, como oferecem um ao outro um afeto que, nem de longe, é dado a Sara, a qual permanece, mesmo com todas essas provas, irredutível quanto ao caminho pelo qual seguir.
Collins então faz um movimento mais drástico para que Sara saia desse ambiente inerte. Primeiro nos mostra algumas facetas reprováveis de seu marido Victor, que mistura a liberdade para seu processo criativo com relacionamentos extraconjugais como se tudo fizesse parte de um mesmo pacote. Mas creio que o desfecho, ao aproximar Sara da arte, apenas comprova, que aqueles personagens, pelos quais tínhamos pouca ou nenhuma empatia, estavam certos. A cena final, uma resposta metafórica e dramaturgicamente dada por Sara à Victor, é uma demonstração de que apenas pela arte uma pessoa negra pode se expressar e se fazer ouvida. E nesse sentido o filme acaba por se sabotar.
OS PARAÍSOS DE DIANE (2024)
Um dos melhores filmes da Mostra Competitiva Internacional do Olhar de Cinema, Os Paraísos de Diane brinca com as emoções do espectador, bem como com a dos seus personagens também. Se em seu início vemos um casal em um momento de extrema intimidade, demonstrando, ambos, muito afeto e tesão, logo após vamos para toda a aflição de um parto normal, com direito a close do bebê coroando. Em ambas as cenas, aquilo que é mostrado causa efeito instantâneo em quem assiste, pois essa exposição se dá de forma bem direta. Mas logo após o parto é que, de fato, o filme começa. Diane (Dorothée de Koon) se vê naquele quarto sozinha, sob uma pressão a qual não sabe se dá conta. Completamente despreparada para aquela responsabilidade. Seu marido Martin (Roland Bonjour) apenas expressa “muita vontade” em ficar junto de Diane e da filha, mas assim como em nossa realidade, sai do quarto, se retirando de toda e qualquer responsabilidade pelos cuidados da filha e da esposa que acabara de parir.
A câmera aqui tem papel mais do que fundamental, pois nos mostra certas ações com as quais poderemos traçar paralelos e refletirmos sobre os sentimentos de determinados personagens. Ainda neste quarto da maternidade, enquanto o bebê chora, Diane, estática ao lado dele, consegue apenas cantarolar uma música de ninar, ao passo que no quarto ao lado a mesma cena se repete, porem a câmera, mesmo através de uma cortina, consegue captar o momento em que a outra mãe pega o seu bebê que também estava a chorar e o coloca junto ao seu corpo, o acalmando. Já Diane está paralisada e, ao mesmo tempo, está em um processo de ebulição.
É engraçado que ao repetir os mesmos passos que, minutos antes, seu marido fez, sequer colocamos isso na equação. Pesa e sempre pesará sobre a mãe – pelo menos enquanto vivermos nesse sistema social do patriarcado – o ato de cuidar de sua prole. Ficamos angustiados, temerosos e boquiabertos pela escolha que Diane faz. E a partir daí, se em um primeiro momento ficamos apenas contando os segundos esperando por uma reconsideração, aos poucos vamos deixando de pensar no que pode estar acontecendo lá e focamos apenas no emocional da protagonista. Sem rumo, mas certa de que não quer voltar. Tentando apagar qualquer vestígio para que não a encontre, mas tendo sua memória como uma inimiga.
Nessa sua fuga um outro movimento interessante é quanto ao realismo que não é deixado de lado. Seus seios, ao não amamentar, vazam o leite e isso não só traz um inconveniente pelo próprio fato como também atrai olhares de homens desprendidos de qualquer vergonha ao sexualizar, mesmo que de maneira sutil, tal situação. Os personagens masculinos, aqui, se mostram desprovidos de qualquer empatia, além de enxergarem a mulher apenas como um objeto sexual.
No meio de tudo isso Diane conhece Rose (Aurore Clément), uma senhora solitária e confusa. É aqui que sua vida começa a se estabilizar novamente. Ela encontra a paz. Mas em uma cena em que Rose parece não saber direito onde está, a câmera, assim como na cena da maternidade, vai focar no que Diane vai fazer ou deixar de fazer. E de imediato a relação é feita para que na cena seguinte ela tenha a curiosidade de saber como sua filha está.
Os Paraísos de Diane é um filme sobre escolhas. Principalmente as escolhas das mulheres sobre seus corpos. Nesse sentido é muito claro como Diane é dona de si e assume todas as responsabilidades em relação a isso. Aguenta firme toda a pressão imposta a ela por ela mesma e também pelo seu marido, que de alguma forma representa toda a sociedade. No entanto os diretores Carmen Jaquier e Jan Gassman estão mais preocupados em um sentimento acolhedor sobre sua protagonista e é nesse ponto que acho o filme ainda mais bonito.
TIJOLO POR TIJOLO (2024)
O melhor do Brasil é o brasileiro. Tal afirmação é colocada à prova diariamente. E de forma impressionante, a resiliência e criatividade do nosso povo confirma sempre a premissa inicial. Tijolo por Tijolo, filme dirigido a quatro mãos por Victoria Alvares e Quentin Delaroche, nos apresenta a uma típica brasileira. Cris é uma mulher negra, moradora da periferia de Recife. Mãe de três e grávida do quarto filho. De sorriso largo e um otimismo sem igual, de imediato somos cativados por ela e por grande parte de sua família, principalmente por seu filho Caíque.
Acompanhamos seu relato de que sua casa deverá ser demolida, pois já não há garantias quanto a segurança e estabilidade do imóvel. Nem por isso ela deixa de sorrir. Sabe que o caminho será dificil, mas sua coragem impressiona. De cabeça erguida já tem um plano para levantar sua nova casa, tijolo por tijolo.
O filme se inicia em 2021, pandemia e o desgoverno do Bolsonaro, um cenário completamente desesperador. Mas de alguma forma essa mulher tira força para dar conta dos seus três filhos, de sua casa e de uma gestação. Essa força vem do povo, da periferia…dos seus. É bonito de ver mulheres, lado a lado, subindo os tijolos que serão utilizados na construção da casa nova de Cris. Um a um. Nessa mesma empolgação não dá para ficar indiferente ao ver o seu marido, a noite, trabalhando na construção da casa e muito menos em ver seus filhos querendo ajudar. Poderia ser um sinal de infância perdida, mas não aqui. O filme faz questão de mostrar que até nisso eles se divertem e aprendem.
Tijolo por tijolo se utiliza de várias estéticas e a finalidade é mostrar os vários formatos, tal qual Cris se utiliza para quebrar barreiras. Logo de inicio vemos o tempo correr através das várias fotos de Cris e sua família. Assim, rapidamente, acompanhamos o namoro, o casamento e o nascimento dos três primeiros filhos. Ao longo do filme vamos nos deparar com diversos vídeos feitos e publicados por Cris em redes sociais, era o começo da sua vida como criadora de conteudo/ influencer. Através da plataforma Kwai ela começa a gravar vídeos, principalmente sobre a construção da sua nova casa, e logo faz seu marido gravar também. O filme a partir daqui vai ser constantemente costurado através desses vídeos que mostram a evolução da casa, mas não só. Um grande ponto a ser debatido aqui é sobre essa quarta gravidez. A discussão não é propriamente sobre ela, mas o que será feito após. Cris luta por uma laqueadura. Por conta da pandemia não conseguiu fazer e uma gravidez aconteceu logo em seguida. Sua esperança é de que após o parto, uma cesárea, sua laqueadura seja feita. É este o único momento que mexe com a alegria desta mulher que parece inabalável.
Cris é uma mulher de muita fibra. Se reinventa. Não se dá por vencida. Com o pouco que tem, não se exime de ajudar a quem mais precisa. Tijolo por Tijolo poderia ser somente um filme sobre a construção de uma nova casa, mas vai muito mais além. Fala muito sobre nossas ações e como elas reverberam causando um efeito manada. Sem uma casa, Cris viu a comunidade lhe ajudar. Com a enchente em recife que levou diversas casas, foi sua vez de montar uma força tarefa para alimentar aqueles que tinham fome. Nada mais poderia ser tão poético e profundo. Tijolo por Tijolo é cinema. Tijolo por Tijolo é Brasil.