Muito entusiasmado que fiquei pelo filme de abertura (Retrato de um Certo Oriente) e pelos três filmes que assisti no 2º dia de festival era, então, de se esperar – ainda mais pelo meu carinho pelo Olhar de Cinema – que minha expectativa estivesse altíssima. Infelizmente o primeiro filme do dia, A Capsula, sequer chegou perto de corresponde-la. Mas preciso dizer que a culpada não foi a minha expectativa. Felizmente o dia foi salvo pelos filmes seguintes. E para a minha surpresa, este seria o dia em que eu assistiria ao melhor filme do festival. Cobertura olhar de cinema.
A CAPSULA (2024)
O único longa da Mostra Mirada Paranaense – Mostra dedicada a filmes produzidos no Paraná – A Capsula tenta investir em um cinema de gênero, mas demonstra muito amadorismo na sua concepção.
Em um mundo “pós-apocalíptico” Mariana é uma jovem exploradora. Em um ambiente deserto procura por água enquanto, através de um walkie talkie (bastante improvisado), conversa com seu irmão “Dinho” que está em um container. Esta premissa ainda que bastante básica e com certos elementos pouco inventivos consegue até criar uma áurea interessante para o filme. O grande problema é que a obra não consegue se manter por muito tempo com esse nivel de interesse. Ela se sabota o tempo todo. O filme oscila entre alguns bons momentos e diversos momentos ruins.
Mariana é a única personagem que desperta algum tipo de curiosidade e, como citei no texto anterior, ela consegue manter a linha do Festival enquanto representatividade feminina e não só, pois aqui ela é desenhada como a única mulher com coragem para enfrentar o desconhecido. Mariana é quem narra a história e, conforme vamos sendo embalado por sua voz, vamos cada vez mais nos conectando com ela. O problema é que o diretor Ribamar Nascimento faz um filme em que necessitamos nos conectar também com outros personagens, mas esse objetivo jamais é alcançado. Seja por conta dos personagens unidimensionais, seja pelos diálogos pobres – monossilábicos em muitas vezes – ou até mesmo pela repetição de cenas que apenas incham o filme sem propor nada novo e nem mesmo uma ideia de continuidade na obra.
A aposta na trilha sonora para engrandecer certas cenas e, acima de tudo, evocar uma tensão, até surte efeito algumas vezes, mas dura tão pouco que se torna esquecível. O mesmo vale para a comunidade em que Mariana e Dinho moram. Mesmo com o perigo instaurado ali, sequer nos preocupamos com aquela gente, tamanha é a indiferença com que aquelas pessoas são retratadas. A bem da verdade é que o cenário também não ajuda, tudo soa muito artificial e os figurantes, um tanto robóticos.
A certa altura já dava para imaginar para onde o filme iria. Principalmente quando o diretor começou a usar flashbacks para explicar o que aconteceu com o mundo (ou com aquela região apenas). Mas quando estes momentos acontecem quebram a pouca fluidez que o filme conseguia apresentar.
A palavra chave para esse filme é autossabotagem, pois quando o filme consegue criar algo positivo, quando a narrativa consegue se manter fluida e coesa, quando a tensão é criada, a cena seguinte sequer faz sentido e todo o esforço é jogado fora. Uma cena em que isso fica evidente ocorre logo no início do filme. Mariana está em um casarão e neste local acha uma passagem secreta e lá encontra água. Tudo isso acontece em questão de poucos minutos, não há nenhum ânimo nessa sequência que deveria ser, de alguma forma, reconfortante. Mas piora quando ao perceber que alguns motoqueiros se aproximam, ela não se importa em deixar sua própria moto totalmente visível, volta para a parte interna do casarão com toda calma do mundo, logo depois desce por uma corda através de uma janela e, ao avistar, dois homens na frente do casarão, lança dois explosivos. O diretor, ao que parece inconsciente das limitações do filme, resolve mostrar aqueles personagens “feridos” e não há como gostar do que se vê. Mas para além do mal feito, o filme não constrói nada parecido ao longo dos seus 92 minutos. Tal embate só acontece ali, para nunca mais ser repetido. A Capsula é uma verdadeira montanha-russa, no qual o carrinho percorre muito mais tempo por baixo do que por cima.
EU NÃO SOU TUDO AQUILO QUE QUERO SER (2024)
Imaginem um filme em que a sua história é contada só, e somente só, através de fotos. A minha impressão ao início do filme, sendo honesto com vocês, é de que seria uma experiência extremamente maçante e que eu iria sair daquela sessão completamente desanimado. Mas o que aconteceu, para minha grande surpresa, foi o completo oposto.
Eu Não Sou Tudo Aquilo Que Quero Ser conta a história da fotógrafa tcheca, Libuše Jarcovjáková. Uma profissional totalmente desconhecida por grande parte do público do festival e, provavelmente, de quem me lê aqui também, mas que conseguiu me cativar em pouquíssimo tempo. O filme é dirigido por Klára Tasovská que coloca a própria Libuše para narrar durante todo o filme. Esta decisão, claramente, contribui para um contato maior com a personagem e nada melhor do que quem viveu contar a sua própria história e dar todas as informações e contextualizações sobre aquelas inúmeras fotos.
Libuše Jarcovjáková é uma jovem mulher que mora com os pais em Praga, capital da Tchecoslováquia, agora, ocupada pela União Soviética. Esta mudança, é bem verdade, não muda nada na vida da jovem. Libuše se mostra como alguém completamente adaptável e isto se comprovará com todas as suas experiências, também, no Japão e na Alemanha. Mesmo ainda muito jovem conseguimos perceber o seu gosto pela fotografia e algumas peculiaridades do seu olhar. Era um olhar sem censura, desprovido de malicia e com uma intenção muito clara de ser o mais genuíno possível. No entanto essa inocência por vezes jogou contra a própria Libuše.
Por vezes a sorte também esteve ao seu lado, pois fizera com que ela estivesse em lugares e no tempo certo para deixar para a posteridade os registros daquele tempo. Em 1968, data em que este documentário tem como ponto de partida, é justamente o ano da Primavera de Praga, quando a República Socialista da Tchecoslováquia é invadida pelos soviéticos.
Novamente preciso pautar esse texto pela forma impressionante em que esse filme se estrutura. Uma montagem de fotos sucessivas, muitas do mesmo momento capturado, mas com segundos de diferença, que em muitas composições conseguem dar ideia de movimento. Cada cena é estática, evidentemente, mas sem nos darmos conta, a impressão é de que temos um filme de bastante cinética. O som de fundo, pensado justamente para dar vida aquelas fotos, colabora para a imersão e quando percebemos já estamos completamente sugados por aquela história.
A vida de Libuše está longe de ter sido fácil, mas ela é aquela típica personagem que se a vida lhe der limões ela faz limonadas. Ficou grávida, abortou. Casou, se separou. Morou em Berlim e em Tóquio. Viu de perto a invasão de Praga e a queda do Muro de Berlim. Viveu boa parte de sua vida tentando encontrar respostas junto às suas fotografias e foi, justamente através dela, mesmo depois de décadas, que Libuše Jarcovjáková se tornou mundialmente reconhecida.
A MENSAGEIRA (2024)
Dirigido e roteirizado por Cláudio Marques, o filme conta a história de Íris (Clara Paixão), uma mulher negra e oficial de justiça. O filme, que se passa em Salvador, vai discutir a justiça brasileira de um modo geral bem como – e talvez o tema mais importante para mim – o branqueamento ideológico.
O filme já abre com um trator derrubando algumas casas (barracos) e desapropriando aquele espaço. Ainda nesta cena vemos que moradores afirmam ser donos daquela terra e, mesmo assim, Íris, sem nenhuma hesitação, responde que apenas faz a lei ser cumprida. É interessante notar como neste momento o desenho que temos é o de um afastamento das duas oficiais de justiça, mulheres negras, em relação àquelas pessoas que estão sendo enxotadas de onde moravam. Pessoas negras também.
Quando o filme se debruça sobre essa questão, utilizando diversos elementos característicos do povo preto, sobretudo o baiano, tem aí a sua maior força. Até mesmo quando abraça a fantasia, como nos sonhos de Íris, a obra nos conduz sobre uma perspectiva muito clara de nos apresentar as raízes daquela personagem.
O problema está dentro do recorte judicial que serve como mote principal da narrativa de A Mensageira. Essa trama onde existem muitos corruptos que se prevalecem por uma justiça igualmente corrupta não me parece sólida o suficiente para propor uma discussão mais avançada sobre os problemas que surgem através disso. E fica ainda pior quando ao fim, existe um voto de esperança, enquanto que a nossa realidade vai por um caminho diametralmente oposto.
O diretor Cláudio Marques consegue dialogar muito bem com a cultura africana, colocando a protagonista nesse processo de resgate histórico, criando cenas que impactam quem está assistindo. Entretanto considero simples demais como ele utiliza o nome da personagem em uma clara relação com o problema que ela tem na visão e que a faz sempre pingar um colírio em seus olhos. É evidente, principalmente, através da primeira cena que Íris não se enxerga fazendo parte daquele povo. A sociedade, ao coloca-la no papel de oficial de justiça, vai a cegando e fazendo com que ela seja mais um instrumento das mãos pesadas da justiça e do estado sobre aquele povo que tanto já sofreu.
A Mensageira se estabelece por um desenvolvimento muito correto e traça um arco muito bonito para a protagonista, mas derrapa em certos discursos. Falar sobre a corrupção e como isso afeta aqueles mais vulneráveis precisava de um pouco mais de profundidade, o que aqui, claramente, não existiu.