FOCO HELENA IGNEZ

FOCO HELENA IGNEZ

Além dos 8 filmes de Helena Ignez já disponíveis na plataforma, “Fakir” é a estreia da semana na Embaúba Play Foco Helena Ignez

A trajetória de Helena Ignez atravessa todo o cinema brasileiro, como ela mesma faz questão de sublinhar. Como atriz, ela inicia carreira atuando em filmes do Cinema Novo, bem antes de se tornar estrela do Cinema Marginal, no final da década de 1960 e início da de 1970, em obras dirigidas pelo companheiro Rogério Sganzerla e por Júlio Bressane, de quem foi sócia na lendária produtora Belair. Rebelde extraordinária, sedutora sagaz, mulher de todos: Ignez ocupa, no imaginário cinematográfico brasileiro, posição singular. Graças a sua autenticidade, ousadia e inteligência performática, sem mencionar sua prodigiosa produtividade – é creditada em 39 filmes como atriz e dirige, aproximadamente, um filme a cada dois anos, feito raro no cinema brasileiro, tão exposto a descontinuidades e desvios. Seu filme mais recente, A alegria é a prova dos nove (2023), é seu décimo segundo filme, entre longas, médias e curtas. Foi só depois da morte de Sganzerla, em janeiro de 2004, que se aventurou na direção de seus próprios filmes, já com mais de 60 anos. Em entrevista a Gabriela Rufino Maruno, autora de tese sobre sua obra, ela revela que sentiu necessidade de elaborar o luto, de dar continuidade ao trabalho daquele que sempre a incentivara a dirigir, a expressar-se como autora. Do “baú do Rogério”, conta ela nessa mesma entrevista, saíram materiais de montagem para A miss e o Dinossauro (2005), o roteiro de Luz nas trevas (2010) e outras tantas lembranças, registros de sua história que, na tese de Maruno, formam um “acervo criativo inigualável, com potencial para converter Helena em uma arqueóloga da própria vida. Foco Helena Ignez

É engano, contudo, concluir que sua obra permanece atrelada ao seu passado de atriz, requentando recursos expressivos que experimentou com a turma do cinema novo e do cinema marginal. “O cinema dirigido por Helena Ignez nasce contemporâneo, ainda que sob a franja anárquica  estética da Belair. Seus filmes formam um conjunto de tônica experimental que rompe com as tradições e abdica das narrativas fáceis, subvertendo naturalismos, ficcionalizando o documental e explorando o potencial de performance de suas personagens”, escreve Gabriela Rufino Maruno em sua tese de doutorado. A tese de que o cinema de Ignez nasce contemporâneo, defendida por Maruno, tem bastante fundamento, se pensarmos no “contemporâneo”, com Giorgio Agamben, como atribuição de quem se percebe inadequado ao presente e, face a tal inadequação, toma distância para melhor entrever as “trevas do presente”, ampliando sua capacidade de ação e transformação. Nesse sentido, Helena Ignez é uma diretora radicalmente contemporânea e o fato de um de seus filmes mais emblemáticos – a continuação do Bandido da Luz Vermelha (Rogério Sganzerla, 1968), marco do cinema marginal e moderno brasileiro – receber justamente o título de Luz nas trevas não é nada trivial.

Quem navegar pelo conjunto de filmes reunidos neste Foco Helena Ignez terá a chance de observar este trabalho de escavação das próprias experiências, de reiteração da história pessoal, mas também de reflexão sobre a história coletiva pelas vias de um “cinema afetivo-performativo”. Para seguir a argumentação central da tese de Maruno: o cinema de Ignez solicita ao corpo do espectador respostas corporais e cognitivas que desafiam os lugares comuns da espectatorialidade, conforme recombina práticas performáticas marcadas pela teatralidade, desde a improvisação até o que poderíamos chamar de uma poética do artifício, que envolve procedimentos metalinguísticos, hibridismos entre registros ficcionais e documentais, não linearidade e provocativas apropriações e invenções simbólicas, com boas doses de ironia e deboche. São estratégias de transgressão de todo e qualquer lugar comum, sem dúvidas experimentadas por Helena ainda na juventude como atriz do cinema marginal, mas reinventadas e atualizadas em seu trabalho como diretora, na maturidade. Helena é agente da história, radicalmente contemporânea porque seus filmes enfrentam as trevas da banalidade, da falta de imaginação e do conservadorismo político e estético de parte do audiovisual brasileiro e da sociedade como um todo – conservadorismo manifesto não apenas na forma do filme, mas também nos modos de composição das equipes profissionais, majoritariamente masculinas – com golpes sensoriais, subjetivos, afetivos. Estejam advertidos que o contato com seus filmes pode provocar sentimentos de inadequação, vertigem, indignação e até mesmo incompreensão, necessários para que possamos, em meio às trevas, entrever alguma luz, para abrir caminho à novidade.

Crédito do texto: Carla Maia (curadora da Embaúba Play)

MOSTRA HELENA IGNEZ

Lançamento:

FAKIR (Helena Ignez, 2019, 92min)
O documentário longa-metragem Fakir retrata o sucesso do faquirismo no Brasil, América Latina e França. Esse espetáculo de arte popular originário do circo é apresentado e analisado através de um acervo que revela o sucesso dessas apresentações com seus campeonatos de resistência a dor e a grande presença do público, incluindo políticos e autoridades do governo. Fakir se estende em filmagens atuais de artistas contemporâneos que mantêm viva essa arte em performances e shows.

No catálogo:

RALÉ (Helena Ignez, 2015, 73min)
Ralé é um filme dentro de um filme. Jovens diretores, adolescentes prodígios, estão filmando “A Exibicionista” em meio a uma fazenda numa região paradisíaca. Barão, personagem de Ney Matogrosso, vive nesta fazenda onde irá celebrar seu casamento com o dançarino Marcelo. O filme investiga poeticamente a alma brasileira, colocando a Amazônia como epicentro do mundo, refletindo a respeito de questões existenciais, legitimando o direito à liberdade e individualidade sexual. Filme filosófico e musical, livremente inspirado na peça teatral Ralé, de Maxim Gorki.

OSSOS (Helena Ignez, 2014, 19min)
Inspirado na “Classe Morta” de Tadeusz Kantor, Ossos é um happening cinematográfico, onde desnudar-se é um caminho para a liberdade e uma afirmação da alegria.

FEIA, EU? (Helena Ignez, 2013, 70min)
Filme Manifesto, Feio, Eu?, foi realizado a partir de uma oficina para atores (Personagens em Busca de Um Filme) realizada na Lapa, Rio de Janeiro, no espaço do Cinema Nosso, estendeu-se em locações em Paris e Kerala (Índia). Multifacetado como um caleidoscópio, os personagens surgem em cenas e sequências também em multi-telas. Realizado com diversas mídias de captação de imagens Feio, Eu? usa este signo da variedade, imposto pela produção independente, como experimentação e linguagem. Ficção? Documentário? Transpondo os limites de estilo, Feio, Eu? navega num mar de metáforas, políticas filosóficas e musicais, do Príncipe Harry a Heráclito, passando por uma série de autores como Rimbaud, Brecht, Nietszch, Bispo dos Rosários e Eduardo Viveiro de Castro, captando um país contraditório e original.

O PODER DO AFETO (Helena Ignez, 2013, 31min)
Poder dos Afetos é média metragem de Helena Ignez, protagonizado por Ney Matogrosso, Simone Spoladore, Djin Sganzerla e Dan Nakagawa. O filme desenrola-se em cenário paradisíaco, tratando a brasilidade e a sua força na transformação dos costumes, rompendo preconceitos e trazendo a tona uma realidade mágica e original através de seus personagens inquietantes.

LUZ NAS TREVAS – A VOLTA DO BANDIDO DA LUZ VERMELHA (Helena Ignez, 2010, 83min)
Luz nas Trevas, continuação do clássico O Bandido da Luz Vermelha, de Rogério Sganzerla, narra a história de dois dos mais famosos marginais de São Paulo. Seu filho o bandido Tudo-ou-Nada é o fio condutor que atravessa essa história política e existencial. Adorado pelas mulheres, Tudo-ou-Nada segue a “carreira” de seu pai a fim de desfrutar de uma ampla variedade de prazeres mundanos.

CANÇÃO DE BAAL (Helena Ignez, 2008, 77min)
Poeta e cantor, Baal recebe convite de Meck, madeireiro predador, para um jantar oferecido em sua homenagem. Sarcasticamente recusando propostas que levariam à sua ascensão social, optando por uma vida de outsider, Baal preenche seus dias com casos amorosos. Nessa fábula musical antropofágica ouve-se a voz do próprio Bertolt Brecht e a entrevista de Einstein no Brasil, onde teria sido comprovada a Teoria da Relatividade.

A MISS E O DINOSSAURO – BASTIDORES DE BELAIR (Helena Ignez, 2005, 18min)
Ao registrar em Super-8 o making-of de Cuidado, Madame e Sem Essa, Aranha, duas produções simultâneas da Belair, Helena tinha o projeto de fazer este documentário à época do lançamento dos filmes da produtora, o que não foi possível. Em 2005, ela dá forma final ao ensaio, narrando em primeira pessoa sua experiência com o grupo.

REINVENÇÃO DA RUA (Helena Ignez, 2003, 27min)
Em Reinvenção da rua, Helena Ignez assina seu primeiro filme como diretora. É uma homenagem ao arquiteto e artista contemporâneo norte-americano Vito Acconti, que realizara uma intervenção urbana sob um viaduto em São Paulo, transformando aquele espaço para ser aproveitado pela população de rua que vivia nas redondezas.

Sobre o Autor

Share

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *