CRÍTICA – VIDA DE CAMPEÃ

CRÍTICA – VIDA DE CAMPEÃ

Nem sempre o final de uma história é o que mais importa. De certo, há muitos filmes sobre a jornada até a conclusão, e que valorizam essa jornada. Afinal de contas, conforme amadurecemos, é possível compreender que mais valioso que o objetivo é o investimento no processo. Contudo, que exemplos temos de filmes em que a conclusão está dita desde o início? Para somar, ainda, que exemplos temos de filmes em que a jornada até a conclusão sequer é vista? A singularidade de Vida de Campeã (2020) é que o filme trata sobre um ponto de ruptura, que altera toda uma jornada e torna o final inconclusivo, mas o ponto está nisso: é a história de uma decisão. Nadia, canadense de 23 anos, foi atleta de natação, especializada em nado borboleta, desde que tinha 10 anos de idade, mas decidiu aposentar-se, mesmo estando no auge de sua carreira. Essa premissa básica contém diversas camadas que são trabalhadas, em profusão, ao longo do filme, haja vista que a atleta tem ressentimentos profundos relativos à sua idade e ao momento de vida em que está. De início, não é um mistério que atletas profissionais têm um estilo de vida inusuais, que envolve diversos sacrifícios e muita disciplina. Ainda mais considerando o fato de que a maioria deles inicia seu treinamento desde a infância, é possível dizer que, dentre os desportistas de alto nível, a infância e a adolescência desse grupo seleto de indivíduos foram bem diferentes das demais pessoas. Nesse contexto, o filme trabalha muito bem, por meio dos diálogos, o ressentimento que a protagonista carrega por haver vivido sua juventude inteiramente voltada para a natação, como ao, por exemplo, reclamar que nunca tomou uma decisão por conta própria na sua vida.

Aliás, há uma cena em especial que resume, basicamente, todo o filme. Nela, a equipe olímpica, após a competição, está comemorando com bebidas e divertindo-se com sites de fofocas sobre as olimpíadas, mas irrompem em discussão, que inicia-se com comentários agressivos de Nadia. Inclusive, o roteiro constroi as três outras atletas para serem contrapontos, inteligentes, por sinal, à protagonista e ao momento de vida que ela passa. Por um lado, Jesse, a mais nova, tem 19 anos, e Nadia, ao afirmar que “Ela não viveu nada ainda, ela é simplesmente talentosa […]”, revela uma condescendência curiosa, pois, apesar de não parecer muita diferença, quatro anos no meio olímpico é muita coisa, mas, principalmente, reforça sua presunção ao sugerir que a jovem não se esforça tanto quanto ela para conseguir os mesmos feitos: “é uma pena para nós que desistimos de tudo para chegar até aqui”. Por outro lado, Karen, a mais velha, tem 28 anos, e Nadia revela sua inveja velada da vida matrimonial da veterana ao provocá-la dizendo que eles “só podem transar quando não tiverem treino no dia seguinte”, para a qual Karen rebate dizendo que ela não sabe nada sobre amor, pois nunca namorou. Por fim, Marie tem a mesma idade de Nadia, além de serem melhores amigas, as duas viveram juntos toda essa jornada, mas Marie leva tudo com mais leveza que a protagonista, pois a amizade das duas é um dos pilares que sustenta sua atividade esportiva — e isso não é o suficiente para Nadia, que quer trocar de carreira.

Toda essa cena trabalha com muita sagacidade as inseguranças da protagonista ao fazê-la agir de maneira rude como mecanismo de defesa, para esconder suas mágoas. A propósito, Pascal Plante demonstra muita sensibilidade para trabalhar com o emocional oculto desta personagem arisca por meio de uma mise-en-scène criativa. Por exemplo, um plano emblemático ocorre imediatamente após o fim da competição, a última de sua vida: Nadia entra em uma tenda para trocar de roupa e começa a chorar. Em seguida, veem-se as sombras das mãos das colegas, ao lado de fora da tenda, tocando a lona, como se estivessem acariciando-a, mas sem poder vê-la, nem encostá-la. É o primeiro momento em que enxergamos-na vulnerável, e essa impressão que nos é dada perdura para o resto do filme, para que saibamos, quando ela é ríspida, o quão difícil foi sua trajetória e o quão difícil é tomar essa decisão — quando brindam pela sua aposentadoria ela diz: “Eu ainda estou aqui!”. Outro exemplo, mais dilatado, é o contraste que Plante faz entre elementos da vida adulta e os da vida infantil. Em uma cena, Nadia e Marie vão a uma festa no apartamento de alguns atletas italianos, na qual elas bebem e transam com os recém-conhecidos, e, no dia seguinte, ela sente-se mal de ter feito isso. Mais adiante, Nadia entra em um fliperama e brinca, feliz, com uma máquina de pegar pelúcias. Ela consegue agarrar um mascote das olimpíadas, segura-o nas mãos e, logo depois, abandona-o. Deslocada tanto da adultez quanto da infância, Nadia, portanto, vê-se afogando-se em sua mente, um plano que aparece mais de uma vez, expondo sua subjetividade.

Já com relação às fictícias Olimpíadas de Tóquio de 2020, o diretor ainda extrai o máximo que pode desse cenário para contribuir com a imersão do espectador e, também, para complexificação da personagem. Em primeiro lugar, foram usados estádios e plateias reais, uma ambientação muito bem executada, e todas as atrizes foram, na verdade, nadadoras profissionais — o que é fascinante considerando o ótimo grau de interpretação —, então todas as provas podem ser filmadas em impressionantes planos longos para causar mais tensão. Em segundo lugar, as provas são todas filmadas em planos fechados em Nadia, com todo o restante desfocado, plateia, estádio, demais competidoras, com exceção apenas na hora de observar o placar, no alto do estádio — o que remete diretamente ao foco da atleta e, também, à um diálogo em que Nadia diz que, mesmo tendo viajado pelo mundo, nunca viu algo além das piscinas.

Sendo assim, Vida de Campeã trata das forças contraditórias que estão sempre atuando sobre Nadia e afetando-a, enquanto ela tenta suportar o peso de sua decisão: a juventude de Jess e a vida matrimonial de Karen, o fim da carreira de nadadora e o início de uma faculdade de medicina, o sexo e as bebidas da vida adulta e a infância perdida. O roteiro e a direção são tão delicados nesse trabalho, que o final é de emocionar qualquer um. Não vou dizer exatamente como é, recomendo que assista, mas o que ela vislumbra passar rapidamente pelos seus olhos é de uma potência muito comovente. O fim desta história, é um recorte do que virá a ser o início de uma nova história, uma transformação difícil, mas importante — e que lindo é ver essa personagem ser tão bem simbolizada pelo título original: Nadia, Borboleta!


Filme: Nadia, Butterfly (Vida de Campeã)
Elenco: Katerine Savard, Ariane Mainville, Hilary Caldwell, Cailin McMurray
Direção: Pascal Plante
Roteiro: Pascal Plante
Produção: Canadá, França
Ano: 2020
Gênero: Drama
Sinopse: Ainda jovem e em seu auge, Nadia decide se aposentar da natação profissional após participar dos Jogos Olímpicos. Ela quer escapar de uma vida inteira de sacrifícios e uma rotina muito rígida. Depois de sua última prova, Nadia mergulha em noites de excesso, festas e muita bebida, onde, em vez de felicidade, encontra apenas insegurança. Então, ela tenta retomar sua verdadeira busca interior, para enfim conseguir definir sua nova identidade em uma vida fora dos esportes de elite.
Classificação: 14 anos
Distribuidor: Elite Filmes
Streaming: Looke e Amazon Prime Video
Nota: 8,0

Sobre o Autor

Share

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *