A essa altura do campeonato, M. Night Shyamalan já parou de tentar ser sério. Quando pontuo isso, não contesto, em hipótese alguma, a paixão do cineasta indiano pelo ato de fazer filmes. Na verdade, é evidente sua paixão por de trás das câmeras e sua dedicação em manter viva a “magia” do Cinema, que é sempre entregue com muita reciprocidade pelos entusiastas do diretor. Armadilha
O que é um pouco mais simples de se analisar em sua filmografia, mas ainda assim complexo, é assumir que a tal “seriedade” em termos de sobriedade na tonacidade e pela maneira de conduzir os argumentos na trama sofreu uma grande quebra de paradigma, o que foi um divisor de águas e passou a gerar muita polaridade no debate da sua carreira.
O que podemos observar como mais convencional (ainda que desde sempre o diretor costume conduzir seus filmes com uma estética de decupagem única) em sua filmografia, durou cerca de 2 filmes e meio. O doublete de obras-primas com Bruce Willis, O Sexto Sentido, em 1999, e Corpo Fechado, em 2000, e os dois primeiros terços de Sinais (2002). Com o ato final deste último sendo considerado um Plot-Twist “sem seriedade”, podemos considerar que foi estabelecido então um abismo que divide a percepção que se tem do diretor.
A maturidade opcional no ato de assistir filmes pode sugerir, dentro da subjetividade de cada experiência, que não existe uma protocolar forma de desenvolvimento das ideias que o diretor quer passar, havendo possibilidades de quebras de paradigmas e até mesmo maneiras peculiares de se relacionar com filmes, como por exemplo, algum que você reconheça “erros” de lógica no roteiro, mas mesmo assim se relacione muito com a proposta da trama, personagens, atmosfera, criação de mundo, ou qualquer outro aspecto em diferentes combinações.
Pulando esse abismo, o que se vê a diante nos filmes de Shyamalan gera mesmo essa difusão de perspectivas. “Será que ele realmente está tentando ser sério?” – o estopim aparentemente foi com A Dama na Água (2006), que distante do apogeu indicado a 5 Oscars poucos anos antes, agora sequer temos uma definição exata de gênero, já que, assim como no Fim dos Tempos (2008), boas risadas podem ser tiradas, como se fossem mesmo tragicômicos.
Sem mais delongas, Armadilha, última obra de Shyamalan, em cartaz nos cinemas do Brasil, demanda dessa abertura. Caso contrário, você terá argumentos “objetivos” para pontuar trocentas falhas lógicas no roteiro (coisa que nem mesmo o diretor se importa mais) e com isso, irá deixar de se divertir com um filme que, como entretenimento, cumpre com êxito seu papel.
Numa realidade em que Taylor Swift é a fictícia Lady Heaven, cantora que é vivida por Saleka Shyamalan, um carismático pai (Josh Hartnett) leva sua filha (Ariel Donoghue) para o show da ídolo da adolescente. Até que o local se revele uma armadilha.
Relembrando quem um dia já foi chamado de “novo Hitchcock“, agora mais contemporâneo e renovador do que nunca, Shyamalan abre Armadilha como uma experiência imersiva e estimulante, como de costume, tal qual pelo seu controle dos ambientes que permeiam suas diversas narrativas, dessa vez, um enorme estádio configurado para receber show teen de uma ídolo pop – no qual as músicas tocadas ao decorrer vão espertamente se ajustando à altura que as aflições se desenvolvem. Vale pontuar também como, acoplado às subversões e quebras de expectativas, está uma configuração de mise-en-scene e de movimentos de câmera (em especial, panorâmicas) sempre muitíssimo bem apurados e em fotografias igualmente instigantes.
Dessa vez, todavia, dá pra dizer que Shyamalan exagerou (mas isso não é exatamente ruim!). Acontece que: a subversão da vez acontece de forma radicalmente precoce na trama. E por mais que exista uma série de cenas memoráveis (como a do querido funcionário negro vivido pelo divertidíssimo Jonathan Langdon), diversos elementos que ousam acabar com a suspensão da descrença estão presentes. Inclusive, em 2004, Shyamalan desafiou esse assunto ao máximo em A Vila (o qual considero seu melhor filme), mas que em Armadilha, isso pode afastar um pouco os mais racionais dos espectadores.
Mas sabemos que o bom e velho Shy não é racional; ele usa muito mais o coração para tomar suas decisões, assim como a transcendência e a espiritualidade (de uma forma que não pode ser considerada “propagandista” nem mesmo pelo menos religioso dos cinéfilos, já que para Shyamalan, a fé pelas fábulas e pelo amor transcendem qualquer coisa). Mas em Armadilha, que teoricamente não faz uso do sobrenatural, a nova fábula de Shyamalan exige a colaboração do espectador para “ignorar” certas implausibilidades, principalmente pelos policiais no filme, que definitivamente cometem falhas de segurança notáveis.
Felizmente, o que não torna o filme disfuncional é que dois elementos estão com a refinaria em dia: a cadeia de improvisos repleta de viradas absurdas e cômicas e a atuação magistral de Josh Hartnett. E melhor: as duas coisas intercaladas na encruzilhada de possibilidades. No último ato, por sinal, em que as coisas parecem ter ficado embaralhadas demais ao trocar de ambientação, podemos assumir que isso se deve ao fato do vilão também estar mentalmente embaralhado naquele momento.
O que só não dá permissão, em contrapartida, à pinceladas de justificativas para suas ações (que inclusive freiam a ação e cedem espaço para diálogos chatos), como a de um trauma quando mais novo causado pela mãe – uma reciclagem do mesmo vilão de Fragmentado, em 2016. Mas dessa vez, ao invés de uma transformação mítica, temos um desmascaramento de um psicopata já estabelecido, que precisará lidar com a densidade do choque de suas múltiplas facetas enquanto nos diverte com o mais puro humor de suas caretas e expressões faciais fantásticas feitas por um Hartnett inspiradíssimo.
Bem ou mal, cá estamos mais uma vez: uma nova história de origem de um anti-herói / vilão feita por Shyamalan. E que seja mais uma trilogia, porque rir sempre é bom!
PS: na primeira exibição do filme, que contou com a abertura conduzida por M. Night Shyamalan, o diretor reiterou diversas vezes para que todos possam seguir seus sonhos e agradeceu veementemente a todos os membros de equipe e elenco, bem como agradeceu individualmente, nome por nome, de todos que trabalharam no longa. Quem não ama esse homem está morto por dentro!
Filme: Trap (Armadilha) Elenco: Josh Hartnett, Ariel Donoghue, Saleka, Alison Pill, Hayley Mills, Jonathan Langdon, Mark Bacolcol, Marnie McPhail, Kid Cudi, Russ, Marcia Bennett, Vanessa Smythe, M. Night Shyamalan, Lochlan Ray Miller Direção: M. Night Shyamalan Roteiro: M. Night Shyamalan Produção: EUA Ano: 2024 Gênero: Crime, Suspense Sinopse: Um pai e sua filha adolescente vão a um concerto pop, onde percebem que estão no centro de um evento sombrio e sinistro. Classificação: 14 anos Distribuidor: Warner Bros Streaming: Indisponível Nota: 6,5 |