CRÍTICA – NUNCA FUI SANTA

CRÍTICA – NUNCA FUI SANTA

Se tem uma coisa que sabemos hoje em dia, é que o preconceito já não é mais aceitável. Ele existe, mas, na maior parte das vezes, vem de maneira velada. Ele está impregnado nas entranhas da nossa sociedade. A nossa língua é preconceituosa, as “normas” de como se vestir, se portar ou agir. Entretanto, nos anos 1990, esses julgamentos eram bem mais escancarados e determinavam definitivamente sua identidade social. Nesse sentido, o filme satírico Nunca Fui Santa brinca com os rótulos designados a membros da comunidade LGBTQIA+ de forma pioneira.

O filme traz a maravilhosa Natasha Lyonne, muito conhecida por Orange Is The New Black, no papel de Megan como uma clássica líder de torcida americana: magra, loira, com boas notas, um bom ciclo social, com boas maneiras e um namorado  esportista lindo e sarado. Tudo dentro dos clássicos padrões sociais preestabelecidos. Porém, tudo muda quando seus amigos e familiares fazem uma reunião com a adolescente e afirmam com veemência: Megan é lesbica. Seus argumentos são desde seu namorado dizendo que ela não gosta de beija-lo até sua mãe reclamando do vegetarianismo. “Você fica tentando fazer a gente comer esse tofu”, ou seja, só pode ser lésbica. Assim, eles a mandam para um acampamento de conversão chamado “True Directions”, que promete curar a homossexualidade. No fim do acampamento, os “ex-gays” recebem um diploma que comprova sua heterossexualidade.

Bom, não preciso nem dizer que esse filme é hilário, não é? Sua premissa já é um deboche sem tamanho aos estereótipos de gênero. Funciona quase como uma paródia narrativa dos ensinamentos de Judith Butler. Gênero é treinamento. Ele é repetido e reiterado, precisando ser constantemente reforçado no mundo em que vivemos. Comportamentos de gênero não são naturais como comer ou dormir. E é dessa maneira que a terapia de conversão funciona no filme. As mulheres recebem ensinamentos de como  limpar a casa e cuidar de bebês, enquanto os homens aprendem desde cortar a lenha, até a coçar o saco. Um bando de besteiras ilógicas que só reforçam papéis antiquados do que deve ser uma mulher ou um homem. Essas baboseiras são retratadas de uma maneira super divertida! Ainda mais se pensarmos que um dos instrutores do acampamento é interpretado pela drag queen mais famosa do mundo, a impecável Rupaul, que é um dos grandes destaques. Logicamente, esse tratamento patético não é acatado pelos jovens, que fazem de tudo para sair de lá e se desvencilhar desses supostos aprendizados.

Uma das coisas que mais me chama atenção no filme é o trabalho da direção de arte. Assim como os personagens são estereotipados e exagerados propositalmente, o cenário é gritante. O filme trabalha muito bem as cores azul e rosa. O que é rosa, é muito rosa. O que é azul, é muito azul. Se as meninas estão sendo ensinadas trocar fraldas, estão sendo ensinadas no ambiente “mais feminino possível”, um quarto rosa-shocking, com roupas e paninhos cor-de-rosa. E essa brincadeira do exagero diverte e transmite exatamente a mensagem que o filme quer passar. 

É lógico que algumas piadas são um tanto problemáticas, mesmo que propositalmente degradantes. Hoje em dia temos a consciência que algumas piadas não devem ser feitas nem de brincadeira. Mas, os diálogos são muito construtivos para a época. A personagem de Lyonne é o fio condutor do espectador para trazer as discussões que o filme traz. Ela está conhecendo um mundo novo, criando uma rede de apoio (mesmo que num lugar que é contra sua existência). Lá, todos os “pacientes” estão no mesmo barco. Para as famílias desses jovem, suas práticas sexuais designam suas posições enquanto sujeitos, instaurando uma identidade. Por exemplo, se Megan é lésbica, ela é A lésbica. Ela só se torna isso. Mesmo que a discussão não avance tanto para o campo do binarismo de gênero, promove uma boa desestabilização de certas posições hegemônicas. 

Mesmo aparentemente bobo e inofensivo, Nunca Fui Santa possui camadas profundas e, arrisco dizer, vanguardistas. Certamente é um filme que simboliza a luta LGBTQIA+ a favor da própria liberdade. É simples, mas potente e preocupado em gerar debates. É legal pensar que é um filme dirigido por uma mulher, Jamie Babbit, é que, portanto, não sexualiza mulheres lésbicas, não é voltado para o público masculino, o final não é trágico e coloca pessoas que realmente são da comunidade como protagonistas. Infelizmente, isso é bem incomum nos filmes com temáticas queer.


Filme: But I’m A Cheerleader (Nunca Fui Santa)
Elenco: Natasha Lyonne, Michelle Williams, Rupaul Charles, Clea Duvall, Cathy Moriarty, Eddie Cibrian, Melanie Lynskey
Direção: Jamie Babbit
Roteiro: Brian Wayne Peterson
Produção: Estados Unidos
Ano: 1999
Gênero: Comédia, Drama, Romance
Sinopse: Megan é uma garota bastante popular na escola, líder de torcida e namorada do jogador mais bonito e famoso do colégio. Parte de uma família bastante conservadora, Megan se esforça para desempenhar seu papel de garotinha americana, muito embora não aprecie os beijos do namorado e colecione recortes de garotas de biquíni. Seus pais, só para garantir, contratam os serviços de uma clinica dedicada a colocar mocinhas e rapazes meio estranhos na linha. O que deveria ser uma jornada de “cura” se transforma em uma interessante experiência de descoberta para Megan.
Classificação: 16 anos
Distribuidor: Lions Gate Films
Streaming: MUBI

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