CRÍTICA – CORINGA: DELÍRIO A DOIS

CRÍTICA – CORINGA: DELÍRIO A DOIS

Quando anunciaram a sequência de “Coringa” (2019), muitos especularam sobre uma possível conexão entre o palhaço do crime interpretado por Joaquin Phoenix e o universo cinematográfico da DC. No entanto, essa ligação sempre foi improvável, dada a maneira como o primeiro filme se apresentou ao público. Embora alguns o tenham visto como uma história de origem para esse universo, a obra apenas se inspirou no personagem clássico para contar a história de Arthur Fleck. “Coringa: Delírio a Dois” (2024) chega para encerrar qualquer rumor sobre uma integração ao universo da DC. O filme, além de não tentar expandir o Coringa que vimos no primeiro, rejeita constantemente a própria existência do personagem que o inspirou.

Arthur Fleck retorna após os seis assassinatos que incitaram revoltas e agitação social em Gotham City. Confinado no asilo de Arkham, Arthur tenta reprimir o lado doentio que o transformou no Coringa, buscando sua liberdade por meio do bom comportamento. No entanto, enquanto Arthur luta para se afastar da persona do Coringa, a sociedade à sua volta parece mais interessada no vilão do que no homem por trás da maquiagem. Essa tensão entre Arthur e o Coringa é central para o filme, ilustrando o conflito interno do protagonista: ele quer ser reconhecido como uma pessoa comum, mas quase todos à sua volta só enxergam o Coringa, e querem trazê-lo de volta a qualquer custo.

O primeiro “Coringa” se destacou por sua habilidade em mesclar referências visuais e narrativas (com especial destaque para “O Rei da Comédia”, de Martin Scorsese), com uma sólida construção própria, criativa e organizada. O desenvolvimento de Arthur foi conduzido de maneira bem programada, permitindo que o público se identificasse com sua trajetória sem apressar os estágios da transformação do personagem até a sua pior versão: o Coringa. Essa progressão fez com que os momentos de catarse do protagonista também fossem intensamente sentidos pelo espectador, criando uma experiência ambígua e desconfortável, em que as emoções do público e do personagem se alinhavam mesmo nos momentos mais abomináveis.

Por outro lado, “Coringa: Delírio a Dois” já soa como uma obra totalmente perdida no meio de suas referências, confusa quanto aos caminhos que pretende seguir. Não há intenções de desenvolver o personagem, mas sim de limitá-lo, ou de investir nessa relação de identificação com o público que já existia desde o filme anterior. Além disso, o filme assume riscos ao transitar entre gêneros como musical, romance e drama de tribunal, mas falha em encontrar uma forma coerente de unir esses elementos. Após quase uma hora, a impressão é de que o filme, embora tente estabelecer muita coisa, ainda não demonstra ter encontrado o seu foco. Assim, a tendência é de que interesse do público comece aos poucos a vacilar.

Anteriormente, as duas facetas do Coringa compunham um único personagem, coexistindo como uma dualidade ambígua. Quando é sugerido que Arthur Fleck sofre de transtorno de dupla personalidade, definindo sua condição psicológica, é transformado em um homem comum e inocente. Assim, o filme nos afasta daquela experiência ambígua que tivemos no primeiro, substituindo-a por uma tentativa mal inserida de gerar compaixão pelo protagonista. Essa mudança remete ao que tentaram fazer com Norman Bates nas sequências de “Psicose”, onde a tentativa de inverter os arquétipos do personagem também foi mal-sucedida. “Coringa: Delírio a Dois” parece, em certo sentido, uma extensão da icônica cena de Bates no tribunal, mas com Arthur Fleck assumindo esse novo papel — mas neste caso, mal explorado.

O filme conta com alguns recursos promissores, embora subaproveitados, com destaque para a interpretação da Lady Gaga como Arlequina. A inclusão da personagem parece mais como um apelo, reflexo da popularidade alcançada nos últimos anos. E, talvez, fracassa mais uma vez ao tentar explorar isso, e ainda torna o filme refém dessa decisão. Gaga faz o possível, mas há um descompasso entre o peso do casting e a relevância e profundidade da sua personagem. A crítica, portanto, não deve ser direcionada à atriz, que já provou o seu talento em outras produções, mas à superficialidade com que foi tratada, considerando que ela é uma dos protagonistas. Joaquim Phoenix continua dominando completamente a cena, sem deixar a desejar em sua entrega física e comprometimento ao personagem.

“Coringa: Delírio a Dois” é uma mistura de diversos elementos que parecem competir entre si. Os números musicais e de dança são envolventes e talvez devessem ocupar o centro do conceito, já que exploram muito bem os delírios do Coringa. O musical tem esse potencial de revelar os desejos mais profundos dos personagens, ao romper com a estética realista e alcançar efeitos sensoriais verdadeiramente poderosos. No entanto, a constante interrupção desses momentos, abandonando o que o filme faz de melhor, e sem construir algo de igual impacto que mantenha o interesse do público, se torna pouco envolvente. Ao retornar para um romance mal desenvolvido e uma narrativa de tribunal sem impacto, a sensação que fica é de oportunidade desperdiçada.


Filme: Joker: Folie à Deux (Coringa: Delírio a Dois)
Elenco: Lady Gaga, Joaquim Phoenix, Zazie Beetz, Harry Lawtey, Brendam Gleeson
Direção: Todd Phillips
Roteiro: Todd Phillips, Scott Silver
Produção: Estados Unidos
Ano: 2024
Gênero: Musical
Sinopse: Em “Coringa: Delírio a Dois” encontramos Arthur Fleck institucionalizado em Arkham, à espera de ser julgado pelos seus crimes como Coringa. Enquanto luta contra a sua dupla personalidade, Arthur não só encontra o amor verdadeiro, mas também a música que sempre esteve dentro dele.
Distribuidor: Warner Bros
Streaming: Indisponível
Nota: 4,0

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