Sean Baker é aquele diretor que basta um objeto que filma para fazer filme – Tangerine, por exemplo, é inteiramente filmado num Iphone 5S. Esta inventividade e um espírito pulsante de cinema de guerrilha – como bem vimos no final de Projeto Flórida – permite que ele tire projetos do papel mesmo com baixíssimos orçamentos. No entanto, para mim, o que torna Baker um dos cineastas mais apaixonantes atualmente é seu olhar sensível para grupos marginalizados que protagonizam as suas histórias e expõem as falhas do capitalismo e da vida por trás da propaganda em torno do american dream. Isto posto, Anora, vencedor da Palma de Ouro de 2024, mantém o que me fez ficar fascinado pelo cinema de Baker e as suas principais características, mas é de longe o seu filme mais diferente por “abandonar” o realismo tão presente em suas obras para fazer um exercício inverso de Projeto Flórida.
Baker primeiro constrói a fábula de Cinderella urbana em torno de Ani (Mikey Madison), uma stripper que, numa noite de trabalho, conhece o filho de 21 anos de uma família de magnatas (gângsteres) russos e começa a atendê-lo com mais intimidade fora do seu horário comercial. O que inicialmente era um trabalho extra super lucrativo começa a se tornar um relacionamento incomum entre a “plebéia” e o “nobre”. No primeiro ato, o diretor trabalha a dinâmica dos personagens a partir de uma comédia romântica clássica que desafia o status quo, onde o humor é construído através da imprevisibilidade amorosa. Madison e Mark Eydelshteyn fazem com que a audiência comece a se importar minimamente com os dois personagens. Ani se mostra cativante e interessante desde o primeiro momento e a imaturidade de Ivan é estranhamente doce e sincera.
Em relação à protagonista existem algumas dificuldades latentes de trabalhá-la genuinamente dentro desse namoro, que logo depois se torna um casamento oficial em Vegas. Entre elas está o mito que Baker busca derrubar: da prostituta que se casa com o homem rico por dinheiro. E aqui entra a função da abordagem inicialmente fantasiosa de Anora de se aproveitar do arquétipo de Cinderella, que traduz o anseio natural do ser humano de ascender socialmente e ser reconhecidamente especial; diferente dos iguais.
Tanto que, em determinado momento, a própria Ani verbaliza o seu sonho de ter uma lua de mel com um quarto de princesa – igual aos filmes da Disney –, o que culpabiliza o capitalismo na maneira como molda sonhos e desejos, mas não disponibiliza ferramentas para realizá-los, restando apenas que crie poeira no campo das ideias. Ou seja, seria muito leviano julgar Ani por suas escolhas e agarrar uma oportunidade de realizar seus sonhos mais inalcançáveis, por mais que isso signifique oprimir semelhantes e se deleitar na grande máquina de opressão.
Porém, não é preciso conhecer o cinema de Baker, ou entender a estrutura de três atos, para saber que rapidamente as coisas começam a dar errado quando os capangas da família de Ivan aparecem na porta de sua casa para anular o casamento a mando dos pais, que desaprovam o fato dela ser “garota de programa”. A partir daqui o longa assume uma comédia screwball, frenética e absurda guiada por Ani e os capangas – Garnick (Vache Tovmasyan), Toros (Karren Karagulian) e Igor (Yura Borisov) – atrás de Ivan, que foge em meio a confusão e deixa a sua esposa para trás.
Após o jovem russo sair de cena e se tornar um dispositivo de enredo – quase um McGuffin –, Anora se apresenta quase como uma aventura onde os personagens visitam lugares inusitados de carro e se envolvem em confusões por todo local que passam. Com um roteiro ácido e afiado, uma montagem ansiosa, no melhor estilo O Urso, e câmeras rente a seus personagens, Baker e Drew Daniels, seu diretor de fotografia, trabalham diversas cenas simultâneas em prol de criar uma narrativa pulsante, eletrizante e claustrofóbica – sem espaço para organização de momentos – mostrando que seus personagens não têm para onde sair e precisam encontrar Ivan a qualquer custo.
O elenco de apoio ajuda muito a criar essa ambientação e elevar todo o caos a partir de personagens carismáticos. Karagulian e Tovmasyan são hilários, mas é o lacônico Igor que o assume o papel de maior importância dentre os coadjuvantes, porque é ele que faz com que o olhar empático de Baker não se perca em meio às situações absurdas. O papel de Borisov é conflitante, pois ao mesmo tempo que entende perfeitamente o que Ani está sentindo, ele não tem poder nenhum sobre o que acontece; restando a ele apenas obedecer às ordens dos superiores. Com poucas palavras e apenas o olhar, o ator constrói um brucutu de alma doce que vai além da caricatura dos seus comparsas.
Por sinal, existe uma binariedade interessante na arquitetura dos personagens. Os homens são unilaterais – patéticos, bobos e estabanados –, que levam todas as situações sem qualquer seriedade; até mesmo nos momentos em que Igor abre o seu coração para confortar Ani, os diálogos sempre desembocam em reflexões e falas perfeitamente montadas para serem “bobas”. Por outro lado, as mulheres de Baker neste filme são o completo oposto; as situações são tratadas com seriedade e até mesmo a birra infantil de Diamond para com Ani carrega, de certa forma, muita vivência e um entendimento muito claro sobre a forma descartável que a elite enxerga os corpos marginalizados.
É verdade que Baker é excepcional enquanto realizador para montar e trabalhar esta trama multifacetada e frenética, mas não podemos esquecer que no meio de tudo isso está Mikey Madison, que acerta o timing de atuação em todos os momentos e cria uma personagem interessantíssima, que em mãos menos talentosas (por assim dizer) poderiam transformar Ani numa protagonista insuportável, mesquinha e vazia, mesmo com o melhor roteiro em mãos. Então, se Anora funciona da forma que é para funcionar, a responsável é Madison, que é versátil o suficiente para se transmutar e mostrar as suas muitas facetas de sua personagem sem perder a identidade – uma ironia já que opta por não ser chamada pelo seu nome batismo: Anora.
Como Anora espelha Projeto Flórida, não é por menos que seu final também divida opiniões na forma em que Baker transita da fantasia para a vida real, e vice-versa. No longa de 2017, Moone e Jancey se voltam ao imaginário para viver o que jamais viveram na terra do Mickey, enquanto Anora (e o público também) relembra que não existem fadas no conto da vida real.
Filme: Anora Elenco: Mikey Madison, Mark Eydelshteyn, Yura Borisov, Vache Tovmasyan e Karren Karagulian Direção: Sean Baker Roteiro: Sean Baker Produção: Estados Unidos Ano: 2024 Gênero: Comédia, Drama Sinopse: Anora é uma prostituta do Brooklyn que casa impulsivamente com o filho de um oligarca russo. Mas o seu conto de fadas é ameaçado quando a família dele quer anular o casamento. Classificação: 16 anos Distribuidor: Universal Pictures Streaming: Indisponível Nota: 10 |