CRÍTICA – ANTES DO AMANHECER

CRÍTICA – ANTES DO AMANHECER

Antes do Amanhecer (1995) é o primeiro filme da trilogia escrita e dirigida por Richard Linklater. O cineasta é conhecido por seu estilo singular, tanto estético quanto temático, que o torna imediatamente reconhecível. O autor busca uma encenação realista, especialmente na forma como os personagens interagem entre si, com o espaço ao seu redor e com o tempo. Tematicamente, Linklater explora a tensão de situações cotidianas, como relacionamentos pessoais, transições de fases da vida e conflitos familiares. Sua abordagem, tanto no conteúdo quanto na forma, remete às influências do cinema francês dos anos 60, especialmente da “nouvelle vague“, difundidas através dos cinemas independentes ao redor do globo.

No centro da narrativa, Jesse (Ethan Hawke), um jovem americano com uma visão romântica do mundo, e Celine (Julie Delpy), uma intelectual francesa preocupada com questões existenciais, se conhecem por acaso em um trem. Apesar de suas diferenças culturais, a conexão entre eles é imediata. Após conversarem por um tempo, Jesse a convence a descer em Viena e passar a noite explorando a cidade juntos, antes que ambos sigam em caminhos opostos. O filme se desenrola em uma única noite, na qual a relação entre eles floresce de maneira orgânica, movida por diálogos ricos em reflexões sobre a vida, o amor e as escolhas que moldaram suas próprias vidas. E é impossível não se envolver por esses diálogos.

O breve encontro entre o casal se desdobra ao longo dessa única noite. O filme é inteiramente construído a partir de diálogos entre eles, que, sob a direção sensível de Linklater, fluem com espontaneidade e naturalidade. Os protagonistas são capturados explorando diferentes locais em Viena, como o icônico Parque Prater e o cemitério dos sem-nome. Cada ponto turístico e monumento é habilmente incorporado na narrativa enriquecendo as camadas estéticas e temáticas do filme. A destreza de Linklater é tamanha que esses espaços parecem ter sido rigorosamente construídos especialmente para os personagens — como se esperassem por eles e, após sua partida, também sentissem sua ausência.

A temática dos breves encontros já foi abordada diversas vezes no cinema, sendo impossível não lembrar de “Desencanto” (1945), de David Lean. No entanto, Linklater explora essa história em tantas dimensões e mergulha em uma abordagem estética mais íntima e sensorial. Somos rapidamente convencidos da intimidade entre Jesse e Celine, tanto pelos diálogos envolventes quanto pela maneira que são filmados e enquadrados.  Através de pequenos gestos e olhares, e até do próprio silêncio que vai pontuando as suas interações, sentimos uma verdadeira conexão entre eles. Um exemplo é a cena em que os personagens entram em uma loja de discos e, ao som de “Come Here”, a troca de olhares revela a profundidade da conexão.

Conforme a história avança, o uso da câmera e as estratégias da decupagem também refletem as mudanças na relação dos dois. No início, os personagens estão sempre próximos no enquadramento simbolizando a crescente intimidade. Mas, à medida que o amanhecer se aproxima e a separação torna-se  algo inevitável, os planos começam a distanciá-los, separá-los, sugerindo a dissolução daquele breve romance. Não se trata de uma perda de conexão, mas da aceitação de que aquela história tem um fim marcado.

Dessa forma, o filme é composto de interações simples entre os personagens, como assistir à uma dança ou jogando em um bar. Linklater utiliza essas ocasiões triviais para criar um contraste entre a urgência do tempo — eles têm apenas uma noite juntos — e a tranquilidade com que os personagens vivem esses momentos. Esse contraste é responsável por imprimir um tom poético, em que o maior interesse está nos pequenos conflitos que revelam informações e desejos dos personagens enquanto o romance vai se desenrolando.

Um dos aspectos mais marcantes é a maneira como o tempo é retratado.  Algumas cenas são filmadas em “tempo real”, ou algo próximo disso. Isso permite que o público vivencie o tempo da mesma maneira que os personagens, como se estivéssemos com eles. Assim, experimentamos da intimidade compartilhada por Jesse e Celine. Isso é reforçado pela edição discreta, em que os cortes são praticamente imperceptíveis, reforçando a sensação de continuidade e dando consistência para essa abordagem.  Ao longo das quase duas horas de filme, somos transportados para essa noite mágica, sentindo-nos ao lado do casal, imersos em sua aventura romântica.

Por fim, o grande triunfo de Linklater em “Antes do Amanhecer” está na combinação de elementos que pertencem a tradições cinematográficas distintas, muitas vezes consideradas opostas. De um lado, temos o senso de urgência e o planejamento rigoroso do classicismo hollywoodiano; do outro, a liberdade temática e o ritmo contemplativo característicos do cinema europeu, especialmente francês. Ao unir esses elementos de forma harmoniosa, Linklater entrega um dos filmes mais poéticos e serenos do cinema contemporâneo.

Ao concluir a crítica, gostaria de compartilhar uma interpretação mais pessoal do filme, fundamentada em convicções íntimas e reflexões pessoais.

Esse breve encontro entre Jesse e Celine transcende a simples narrativa de um romance; para mim, ele se torna uma metáfora vibrante da interseção entre duas tradições cinematográficas que Linklater combina com maestria. O protagonista americano, com sua visão romântica e idealista, representa o classicismo hollywoodiano, que tende a buscar narrativas com desfechos bem definidos e arcos emocionais claros. Em contrapartida, Celine, a universitária francesa, encarna a liberdade e o espírito de questionamento do cinema europeu, que valoriza a ambiguidade e a contemplação. Essa dualidade se manifesta não apenas nas características dos personagens, mas também na própria narrativa.

Acredito que Jesse e Celine personificam a tensão entre essas abordagens opostas. A urgência do tempo os impulsiona a construir uma conexão intensa em uma única noite, enquanto a fluidez e a profundidade de seus diálogos refletem a riqueza emocional que o cinema europeu frequentemente explora. Portanto, “Antes do Amanhecer” se torna mais do que uma mera história de amor; para mim, ele é um diálogo enriquecedor entre culturas cinematográficas que se complementam e desafiam, levando o espectador a refletir sobre as nuances do amor e da vida.


Filme: Before Sunrise (Antes do Amanhecer)
Elenco: Ethan Hawke, Julie Delpy
Direção: Richard Linklater
Roteiro: Richard Linklater, Kim Krizan
Produção: EUA, Áustria
Ano: 1995
Gênero: Romance, Drama
Sinopse: Jesse, um jovem americano, e Celine, uma linda francesa, se conhecem no trem para Paris, e começam uma conversa que os leva a fazer uma escala em Viena e ficar um pouco mais juntos, sem imaginar o que o destino os reserva.
Classificação: 14 anos
DistribuidorWarner Bros
Streaming: Max
Nota: 10,0

Sobre o Autor

Share

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *