Laranja Mecânica, filme de 1971 baseado no romance homônimo de Anthony Burgess e adaptado para os cinemas por Stanley Kubrick, narra um futuro distópico marcado pela violência e o autoritarismo. O protagonista, Alexander, é líder de uma gangue de jovens que têm como propósito espalhar o caos através de atos de violência gratuita. Com cenas extremamente gráficas e perturbadoras, a obra reflete social e politicamente sobre temas de suma importância para a esfera social, como o livre arbítrio, a corrupção e o controle das autoridades e, até mesmo, sobre patologias.
Em um certo momento do filme, Alexander é preso e, dentro da cadeia, descobre que o Ministro da Defesa está em busca de cobaias para um experimento que supostamente deixaria um criminoso reabilitado em duas semanas. Dessa forma, o protagonista decide ser voluntário, trocando o resto de sua pena pelo tratamento. Esse experimento baseia-se em deixá-lo amarrado em uma cadeira com camisa de força enquanto seus olhos são abertos por grampos que o impedem de piscar durante o tempo em que ele assiste incessantemente filmes extremamente violentos, pornográficos ou mesmo documentários alemães do período nazista. Junto a isso, Alexander recebe substâncias indutoras de náuseas que ocasionam repulsa diante de tudo que envolva sexo ou violência. Com isso, entende-se que as agressões e ataques são, de forma consciente, patrocinados pelo Estado, de maneira que o “controle” dessa violência surge através de sua promoção. Ao pensar esse método, chegamos ao Behaviorismo, que é uma abordagem da psicologia pautada pelo sensorial (empirismo), não mais pelo inatismo, como a Gestalt fazia anteriormente. Não se pensa que, à princípio, os sujeitos detêm o que determina seus comportamentos, mas eles surgem através das experiências, de algum estímulo. Em Laranja Mecânica, durante a sessão, ao passar por tanta dor e sofrimento vendo as imagens, Alex, mesmo que de forma não consciente, associa aquele ambiente e a sua experiência com a violência que vê. Em uma das ocasiões, o filme que ele assiste é acompanhado pela 9a Sinfonia de Beethoven, música adorada pelo protagonista. Entretanto, diante do contexto em que está inserido, há um alinhamento entre a violência extrema, a libido e a 9a Sinfonia. Após o Método Ludovico, quando Alex se vê diante de alguma situação que envolva algum desses três fatores, ele sente a mesma repulsa, já que esses fatores se associaram em sua mente.
No livro “Vigiar e Punir”, publicado em 1975, Foucault caracteriza o panoptismo, antes fundamentado por Jeremy Bentham, como uma manifestação de poder na forma de vigilância individual e contínua, tendo como intuito o controle baseado no castigo e na recompensa como meios de correção. Para ele, o poder disciplinar surge a partir das transformações da sociedade burguesa, fazendo do poder uma arma política usada para ampliar sua força por meio do adestramento. Como grandes exemplos desse tipo de poder, temos as penitenciárias, os hospitais, asilos e, até mesmo, escolas. Para Foucault, a função das penitenciárias sob os detentos é de treinar seus corpos e codificar seu comportamento continuamente. Sendo Laranja Mecânica uma metáfora dessa ideia, compreende-se que o Estado patrocina essas técnicas “científicas” de dominação em escala social baseando-se na industrialização do controle comportamental em detrimento da incorporação de normas de conduta disciplinares.
No filme, esse comportamento controlador se manifesta fortemente na relação entre o protagonista e seus companheiros. Alex mostrava sua força e impunha medo através da violência com os membros do grupo, chegando até a amputar a mão de um de seus colegas. Para eles, o protagonista tentou governar tal como o Estado. Porém, por conta de toda essa repressão, ele foi destituído do comando do grupo no momento que seus amigos o enganam para que ele fosse preso. A dinâmica desse grupo reflete não só certas atitudes do Estado e suas complexidades, mas certas imposições ideológicas e históricas da capacidade de reger a vida daqueles que se submetem ou estão submetidos a um determinado poder. Alex é quase uma representação divina de algo que os governa, existindo para organizar e dar sentido para a vida e ações do restante do grupo, uma microssociedade, com pensamentos dados como inquestionáveis. Ao quebrarem esse “pacto”, Alex os vê como seres subversivos, que seguiram a própria vontade e se chocaram com o que o “Estado”, ou seja, Alex como figura superior, ansiava. Um tempo depois, quando o antigo líder sai da prisão e os encontra como policiais, eles o submetem às mesmas situações de violência, torturando-o. Nesse sentido, eles rompem com regras que conheciam e, a partir disso, não se importam em transgredi-las em prol da justiça com as próprias mãos. Eles finalizaram essa sociedade e essa relação hierárquica, mas ainda participam da punição exercida sobre eles mesmos.
Compreende-se, nesse contexto, que a vida em sociedade exige a aplicação e a aceitação de regras e leis como modo disciplinar. Isso nos leva até a cena da prisão de Alex, em que ele diz que não falará nada sem a presença de um advogado, subentendendo que ele conhece as leis. Por isso, ao descumprir uma lei, supõe-se que ele tem consciência da sua possível punição. Aparentemente, o Estado o punirá para defender os cidadãos, mas, principalmente, para manter a sua hegemonia. Alex é um perigo que deve ser eliminado ou minimamente controlado a qualquer custo, já que ele se volta contra a sociedade na qual está inserido. Sociedade essa que é sua maior inimiga. Nesse momento, toda a sociedade se volta contra esse “traidor”, que a ataca em seu próprio espaço.
Após Foucault situar as sociedades disciplinares, Gilles Deleuze pôde estudar as suas formas de modulação no indivíduo, relacionando-as às variáveis da sociedade atual. Dessa maneira, Deleuze explica que a sociedade disciplinar foi sobreposta pelo modelo de controle. Para Foucault, o panóptico vigiava os sujeitos fisicamente, mas, na sociedade de controle, a disciplina passou a ser imposta virtualmente. Os dispositivos de poder que anteriormente pertenciam a lugares fechados, principalmente em instituições como prisões ou escolas, passaram a adquirir total fluidez, podendo atuar em diversas esferas do âmbito social. Não importa mais quem ou o que dá a ordem, pois o poder tornou-se líquido e dinâmico. Em entidades de controle não se pode desligar, havendo sempre um estímulo para as inovações sem que problemas básicos se resolvam. No caso da obra, esse estímulo para o progresso da “cura” para a violência é incentivado, ao invés de estimularem a resolução do problema pela raiz com políticas públicas, por exemplo. Hoje em dia, indivíduos são divisíveis, são números, dados. Somos sempre modulados, como em modelos industriais de linhas de produção. Nós mobilizamos dados. Hoje, nossa assinatura não vale tanto quanto nossas senhas, por exemplo. Será que há perspectiva de mudança? Será que esse controle nos é intrínseco? O contexto e a cultura influenciam nessa forma de dominação, mesmo que em escala global? A cultura dita esse contexto? O contexto dita a cultura?
Para Deleuze, a tecnologia, atualmente, propõe uma ideia de controle, seja de dados, informações, imagens, etc. Isso, além de trazer essa perspectiva de poder, agrava a situação de uma desumanização dos meios, atingindo capacidades como a sociabilidade ou até a própria liberdade. Efeito esse muito semelhante ao Método Ludovico de Laranja Mecânica. A tecnologia seria mais uma forma de controle e alienação que nos deixa em uma espécie de lobotomia coletiva? Se mecanismos tecnológicos modificam os nossos comportamentos, qual é a sua novidade em relação a outras mídias e à indústria cultural?
Como analisa Shoshana Zuboff, na obra “A Era do Capitalismo de Vigilância”, estamos em um momento pós-disciplinar, da vigilância mecanizada, que opera nos meios sem que haja internalização do olhar pelo sujeito. Não há necessidade de um vigiado consciente. A vigilância trabalha para a manutenção dos impactos e é efetiva sem que precise alertar, tendo que vigiar o tempo todo. Para a autora, a vigilância tem como ponto final a automatização do julgamento para superar as limitações dos seres humanos. Não necessariamente ela será aperfeiçoada, mas se torna perigosa quando agimos como se ela pudesse ser. O medo se manifesta a partir da desesperança. No próprio filme, inclusive, quando Alex e seus companheiros praticam uma agressão coletiva com um morador de rua, ele demonstra indiferença com a própria morte: “Não quero viver mesmo, não num mundo sujo como esse.”
No longa-metragem, o medo opera principalmente após os efeitos do Método Ludovico em Alex. O protagonista contém sua violência e sua libido com medo de sentir dor. Mais para o final do filme, ao ouvir a 9a Sinfonia de Beethoven, sua dor é tão forte que prefere se jogar da janela para contê-la.
A tentativa de adestrar Alex claramente falhou. A situação se excedeu e o Estado simplesmente abafou o caso. Após se jogar da janela, o protagonista acorda no hospital com alguns ferimentos no corpo. No entanto, ele parece ter voltado ao que era antes do “tratamento”. Percebe-se que ele aparece novamente nos jornais, mas, dessa vez, como vítima do Método Ludovico. O Ministro, então, vai visitá-lo com a desculpa de pedir perdão, mas evidentemente com a intenção de gerenciar a crise de imagem do governo, tentando calar a oposição que estaria se aproveitando politicamente do caso. Se Alex ficar do lado do Ministro na mídia, ele ganhará dinheiro e um bom emprego. Nesse momento, ao aceitar a proposta, Alex insere-se nos moldes sociais vigentes. Agora, para a mídia, Alex é um cidadão que corresponde aos moldes tradicionais e caminha de acordo com as normas da sociedade de controle, que, mais uma vez, conseguiu o que queria. A hierarquia e os comandos se repetem. Nota-se na cena final que seus instintos continuam vivos, já que se imagina tendo atos sexuais com uma mulher na neve com uma multidão assistindo e aplaudindo. Entretanto, escondê-los para os olhos da mídia lhe é pertinente.
O filme, com suas cenas perturbadoras e enredo pesado, nos traz reflexões nas mais diferentes escalas. Ao se pensar essa violência extrema, podemos atingir uma ideia de crise de consciência, que busca o livre-arbítrio a partir de um caminho encontrado com as formas de adestramento do tratamento Ludovico, que é essencialmente uma maneira de caracterizar o capitalismo tardio para as relações humanas partindo da banalização e naturalização da violência na contemporaneidade. Violência que, com uma completa observação da obra, não é inata como pensávamos inicialmente, mas surge como produto de seu tempo histórico e social. Ela é uma mercadoria consumida com certo entusiasmo e admiração; também é um fenômeno a ser evitado, causando medo e patologias de ordem psicológica. Da mesma forma em que ambos os lados ocorrem simultaneamente, ela é apresentada como um elemento natural do meio social, sendo banalizada.
Vemos pessoas vivendo nas ruas, crianças famintas e péssimas condições de vida para milhares de pessoas todos os dias de diversas maneiras e isso não é encarado com a gravidade que deveria, sendo considerados fatos quase que inevitáveis. As pessoas querem violência de uma forma quase sádica. Violência vende. O filme de Kubrick, tratando de violência, foi proibido em vários lugares, mas até hoje tem suas cenas comentadas por diversos veículos. Ele retrata a violência querendo criticá-la. Assim, essas contradições se perpetuam.
REFERÊNCIAS
– BOCK, A. M. B.; FURTADO, O.; TEIXEIRA, M. d. L. T. Capí tulo 2: O behaviorismo. In: Psicologia: Uma introdução ao Estudo de Psicologia. 13. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2019.
– FOUCAULT, M. Cap. 3: O panoptismo. In: Vigiar e punir: nascimento da prisão. 20. ed. Petrópolis: Vozes, 1999.
– DELEUZE, G. Post-scriptum: sobre as sociedades de controle. In: Conversações.São Paulo: Editora 34, 1992.
– ZUBOFF, S. Lar ou exílio no futuro digital. In: A era do capitalismo de vigilância.Rio de Janeiro: Editora Intrinseca, 2021.