CRÍTICA – TODAS AS ESTRADAS DE TERRA TÊM GOSTO DE SAL

CRÍTICA – TODAS AS ESTRADAS DE TERRA TÊM GOSTO DE SAL

Memória e pertencimento distorcidos num fluxo temporal anacrônico: “Todas as Estradas de Terra Têm Gosto de Sal” é o primeiro longa-metragem da fotógrafa americana Raven Jackson, que passeia de forma não linear pela vida e cultura de Mack, uma mulher negra no Mississippi.

O ponto-chave nessa peculiar experiência cinematográfica é compreender que Mack, na verdade, é mais um símbolo do que uma personagem tradicional. Vivida por diversas atrizes que dividem a identidade da protagonista em seus respectivos corpos durante sua jornada, o conjunto de segmentos lembra redemoinhos de memória que inevitavelmente se chocam, ocasionando uma quebra no espaço-tempo em uma obra marcada por outro tipo de avanço narrativo.

É como se Terrence Malick, diretor que tem a liricidade e conexão com a natureza como marca registrada, explorasse um conto como o visto em “Moonlight” (2016), de Barry Jenkins, onde dissecamos a jornada de um jovem negro, que cedo se identifica como homossexual, ao longo de várias fases de sua vida (e diferentes atores). O impacto ocasionado pela intimidade nesses retratos torna-nos observadores perspicazes daquele grupo – nos aprofundando nas especificidades daquela tradição, como o peculiar ato de comer terra – colocando o espectador numa forte reflexão antropológica.

Tal intimidade é genuinamente transposta: os fragmentos de memória transitam suavemente e, com o tempo, aprendemos a incorporar e a viver aquele universo que parece uma fenda temporal complexa e intrigante. Aliás, o filme nos ensina a assisti-lo a medida que a “progressão” desempenha um papel não linear e metafísico. É uma experiência lírica enriquecedora e emocionante em seus melhores momentos, mas que infortunamente pode soar como uma excessiva busca artística quando se torna estilizado demais.

Veja: praticamente não há diálogos. O que mais se escuta é o cricrilar dos grilos e a água corrente dos riachos próximos à comunidade. Nas raras cenas com diálogos, evidentemente que as palavras ganham peso e tudo que sai da boca dos personagens instiga. Contudo, esse exercício cênico uma hora cansa e a comparação antes feita com “Moonlight”, uma obra mais linear, acaba se desvinculando. Uma cena com diálogos, em particular, é extremamente marcante, na qual vemos um esfacelado romance de Mack através do tempo, com relances de conversas com seu parceiro em diferentes fases, intercalando-os crianças com eles mesmos adultos décadas depois.

Mas quando não estamos nessas atípicas cenas, o normal é sequer vermos rostos. Os enquadramentos estilizados de Jackson são de baixa estatura e priorizam as mãos. O desfoche intencional também é adotado, deixando as cenas com um aspecto documental. O jovem Domo Frey assina a cinematografia, e o balanço de cores é equilibrado e apurado. O único problema é que a repetição das mesmas pirotecnias a decorrer constantemente nos lembram a já mencionada “excessiva busca artística”, que por vezes desbanca a, até então, aclamada progressão narrativa atemporal.

O filme continuamente nos relembra que é um projeto artístico, e nos momentos mais alienados acaba forçando-se a parecer um mero ensaio fotográfico. A curta duração, felizmente, serve para não banalizar a vivência, que é sim enriquecedora e retentora de uma prosa proeminentemente simbólica. A misticidade permeia tudo, até no uso da música (que também remete ao estilo Terrence Malick), e a conexão através da atemporalidade é marcante – pondo o conjunto mais como um evento do que como uma tradicional ida ao cinema, ainda que isso gere ônus e bônus.


Filme: All Dirt Roads Taste of Salt (Todas as Estradas de Terra têm Gosto de Sal)
Elenco: Kaylee Nicole Johnson, Chris Chalk, Jayah Henry, Sheila Atim, Bernadette Albright, Preston McDowell, Charleen McClure, Reginald Helms Jr., Monique Norwood
Direção: Raven Jackson
Roteiro: Raven Jackson
Produção: Estados Unidos
Ano2024
GêneroDrama
Sinopse: Uma exploração lírica que abrange décadas na vida de uma mulher no Mississippi, o longa-metragem de estreia da premiada poeta, fotógrafa e cineasta Raven Jackson é um retrato envolvente e ricamente detalhado, e uma bela ode às gerações de pessoas e lugares que nos moldam.
Classificação12 anos
DistribuidorA24
Streaming: Indisponível
Nota: 7,5

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