Quando pensamos no Vaticano, não nos vem à mente padres e cardeais sendo revistados pela polícia, fumando cigarros eletrônicos e usufruindo das mais tecnológicas cafeteiras expressas. O apoteótico Conclave (2024), do diretor alemão Edward Berger, baseado no romance ficcional homônimo do britânico Robert Harris, configura sua aura dessa maneira: um suspense cada vez mais instigante revelando bastidores e a intimidade do Vaticano.
Apontado como favorito ao Oscar de Melhor Filme no momento da escrita desta crítica, Conclave realmente se revela um filme avassalador. Nas exatas duas horas de projeção, temos um ritmo esperto que sabe exatamente quando desacelerar, mostrando a imensa carga psicológica carregada pelo protagonista interpretado pelo exuberante Ralph Fiennes – o cardeal Lawrence, encarregado de mediar a eleição que elegerá o novo papa (após a misteriosa morte do atual) –, e quando ser ágil e revelador, pois o excepcional roteiro de Peter Straughan possui uma inteligência sagaz. Straughan é também o roteirista de O Espião Que Sabia Demais (Tinker Taylor Soldier Spy, 2011) – subestimado filme estrelado por Gary Oldman com um teor investigativo igualmente requintado e bem elaborado.
Adotando uma elegância magistral ao seguir seus passos, o longa confere também uma atenção singular aos pequenos detalhes que configuram o universo e dão total credibilidade a ele. A imersão é imediata: a cena de abertura já nos insere de forma direta numa noite turbulenta dentro do edifício em que todo o filme se passa – inclusive, colocando-o como um dos melhores filmes de confinamento dos últimos tempos. A atmosfera tensa, com inquietantes pinceladas de elementos inevitavelmente presentes em O Exorcista (1973), e a trilha-sonora nem tão original, mas precisamente eficaz e afiada de Volker Bertelmann, dilatam nossos olhos numa elaboração de decupagem (resultado final do processo de transpor as ideias à tela) muito orgânica, já que quaisquer elementos em cena, captados por uma iluminação sombria, porém bastante sóbria, estão ali para compor toda misticidade necessária. Uma equipe de paramédicos pondo um cadáver na maca, o sinal da cruz feito por Lawrence, o ato de derreter tinta vermelha para o carimbo do selo papal – tudo é crível e muito genuíno.
A sensação de urgência é constante. E, além de todos os aparatos primorosos à disposição do diretor (ressaltando os figurinos geniais de Lisy Christl e a fotografia meticulosa de Stéphane Fontaine), a trama constantemente nos intriga com o seguinte ponto de ignição: a qualquer momento, alguma bomba pode surgir (seja uma revelação chocante, ou literalmente um explosivo). Por mais que o inquietante clima de eleição emergencial se mantenha a todo momento interessante – e quando parece que Berger perdeu a mão, ele logo retoma com o pé no chão –, o baralho do jogo aqui possui cartas douradas que aparecerão, inevitavelmente, em situações coringas: os personagens. E que aula de construção de personagens, viu.
É difícil saber por onde começar, afinal, cada personagem aqui possui um peso de elaboração que só perde para as próprias atuações de um elenco que se encontrava, no mínimo, inspirado no set de Conclave. Mas não há outra a não ser iniciar pelo deslumbre de Ralph Fiennes. Ele já interpretou Lord Voldmort na franquia Harry Potter, é verdade, mas aqui o ator opera como um exausto e impotente Alvo Dumbledore tentando gerenciar um conclave que ele sabe estar impregnado de pessoas perigosas e corruptas – enquanto se revela detentor de uma inteligência e integridade ímpar. Nós sentimos confiança nele, e acreditamos a todo momento na sua moralidade, mesmo que ele esteja enfrentando a crise mais difícil de sua vida – o que nos leva a resistir junto com ele à uma possível desistência de sua parte. A sensação de que o caos aumenta e se torna insuportável é dolorosa, ainda mais para um protagonista tão qualificado e injustiçado buscando lucidez onde vulneráveis não têm vez e ninguém confia em ninguém.
“Os homens mais perigosos são aqueles que querem ser papas” – diz Lawrence. E a iminência de que a desordem vai se instaurando é alimentada justamente por aqueles que querem ver o circo pegar fogo. Um dos antagonistas é Tedesco, do italiano Sergio Castelitto. Fascista, fumante de vape, “brincalhão” e ofensivo, nosso alerta fica sempre ligado quando o personagem está em cena; afinal, ele alimenta as chamas da desgraça e ganha forças com seu perigoso discurso “nós contra eles” formando seguidores semelhantes aos de seu conterrâneo Mussolini, nos anos 1940. Adayemi, vivido por Lucian Msamati, também não é flor que se cheire; sua subtrama enriquece e abre as podridões a serem descobertas. John Lithgow também está presente; ele vive Tremblay, sujeito ambíguo e que nos dá margem para desconfiar de que a escala do problema é ainda maior.
Isabelle Rosellini será indicada ao Oscar como Melhor Atriz Coadjuvante por seu papel de apenas oito minutos como uma freira. Aproveitando a anterior menção a Harry Potter: a Irmã Agnes passa por uma transformação semelhante à da professora Minerva McGonagall – inicialmente não simpatizável, mas sua discreta e, ao mesmo tempo, metamórfica interpretação nos faz posteriormente sacar qual a dela. E por fim, a cereja do bolo: Carlos Diehz vivendo o latino Benitez, um cardial misterioso que se abriga no Vaticano após sair às pressas do Afeganistão. Sua participação é extremamente enigmática, mas, sem spoilers: também aquece o coração.
No fim do dia, Conclave opera desse jeito: é tenso e enigmático, mas termina numa nota que choca e que encoraja. Um filme capaz de assustar da mesma forma que se vê como necessário ao quebrar diversos tabus e revelar corrupção e cinismo (com cardeais caluniando a santíssima trindade, e com perdões cínicos e forjados em nome do Espírito Santo) no Vaticano, pondo inclusive os princípios “conservadores” e LGBTfóbicos contra eles mesmos: “Sou assim porque Deus me fez desse jeito. Mereço ser odiado por isso?”
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Filme: Conclave Elenco: Ralph Fiennes, Stanley Tucci, John Lithgow, Isabella Rossellini, Lucian Msamati, Carlos Diehz, Sergio Castellitto, Brían F. O’Byrne, Merab Ninidze Direção: Edward Berger Roteiro: Peter Straughan Produção: Estados Unidos, Reino Unido Ano: 2024 Gênero: Drama Sinopse: Após a morte inesperada do atual pontífice, o Cardeal Lawrence é encarregado de conduzir o processo confidencial do conclave. Os líderes mais poderosos da Igreja Católica de todo o mundo se reúnem nos corredores do Vaticano para participar da seleção, cada um com suas próprias ambições. Lawrence se vê no centro de uma conspiração, desvendando segredos que ameaçam não apenas sua fé, mas também as fundações da Igreja. Classificação: 12 Distribuidor: Diamond Films Streaming: Indisponível Nota: 9,5 |
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