Entre os cinemas do Oriente Médio, o iraniano talvez seja um dos mais reconhecidos mundialmente – de Abbas Kiarostami a Asghar Farhadi (vencedor de dois Oscares de Melhor Filme Internacional e multipremiado em Cannes). Ainda que o cenário seja muito bem desenvolvido e com nomes de renome, não é fácil fazer cinema no Irã. O expatriado Jafar Panahi que o diga, que já foi proibido de fazer filmes em seu país e costuma gravar escondido – já rolou até um caso em que o diretor precisou enviar o filme This is Not a Film num pendrive dentro do bolo para Cannes. Outro que mora exilado na Europa por desafiar as leis de censura do Irã é Mohammad Rasoulof, que gravou em segredo o seu décimo filme: A Semente do Fruto Sagrado, premiado em Cannes e indicado ao Oscar de Melhor Filme Internacional ao lado de Emilia Pérez e Ainda Estou Aqui.
Na história acompanhamos uma narrativa fictícia em torno dos eventos reais do protestos de 2022/2023 ocasionados pelo assassinato de Mahsa Amini pela polícia moral por conta de uma hijab. Ao invés de se infiltrar nos protestos, o diretor cria uma trama familiar que espelha a opressão iraniana sobre as mulheres. Aqui, Iman (Misagh Zareh), um advogado honesto e dedicado a família, é promovido para o cargo juiz no Tribunal Revolucionário Islâmico, responsável por julgar suspeitos de “crimes contra o governo e ao Estado Islâmico”. O problema é que sua posição dos sonhos vem junto de todo o caos envolto dos protestos, o que o faz receber mais de 300 processos por dia. O alto volume faz com que Iman perca a sua humanidade e tome decisões desumanizadas em prol do sistema.
Em sua casa, a matriarca Najmeh (Soheila Golestani) e suas duas filhas Sana (Setareh Maleki) e Rezvan (Mahsa Rostami, uma força da natureza) veem as revoltas a partir da televisão e vivências que cada uma tem. Rasoulof propõe um embate geracional interessante em que vemos a mãe tendo uma visão conservadora e protecionista – em relação às filhas e ao seu marido, que agora é uma figura diretamente envolvida nas consequências dos protestos – enquanto as filhas adotam um lado muito mais progressista e questionam a teocracia e o fundamento das leis pautadas na religião. Na medida que o tempo passa, mais os protestos ganham corpo e se intensificam e acabam respingando na família. Mais precisamente em Sadaf (Niousha Akhshi), uma amiga de Rezvan que participou dos protestos e acabou com um rosto machucado. Pouco depois ela some o que levanta ainda mais indignação por parte das meninas que começam a enfrentar o pai.
A trama dá uma reviravolta quando a arma de Iman desaparece dentro de sua própria casa e ele, já com a mente abalada por conta do trabalho conturbado e pesado, começa a ter surtos de paranoia e a suspeitar de sua família e pessoas ao seu redor. A partir desse ponto, Rasoulof muda completamente o tom do seu filme. Se até então o longa adotava um drama familiar cru e direto ao ponto, a partir deste clímax a história se transforma num thriller político-religioso com alegorias e simbolismos. Pode parecer uma mudança brusca, mas esta virada é feita de forma excepcional pelo diretor, que tira Iman de cena no primeiro ato e vai inserindo-o aos poucos de volta na trama, o que traz à tona a temática envolta do trabalho, que mudou completamente este personagem.
O terceiro ato de A Semente do Fruto Sagrado é um turbilhão de temas, ora condensados na trama, que começam aparecer seja de forma mais direta ou nas entrelinhas. É um frenesi e uma mistura de gêneros – do terror à ação –, fundamental para dar um gás necessário depois de mais de 2h de filme. A parte do deserto é onde Rasoulof se deixa levar para narrativa simbólica e abre um pouco de mão do realismo para trabalhar as alegorias do confronto entre pai e mulheres.
Se muitos elogiam o longa pela sua capacidade de se transmutar, ao meu ver um dos principais méritos está em como a montagem de Andrew Bird costura o ficcional com o real, a partir de vídeos reais do protesto no formato de stories ou Reels/TikToks – ou seja, na vertical –, que quebram a estrutura do filme. É como se com estas quebras Rasoulof nos lembra que tanto suas imagens fictícias em torno da trama da família, quanto as do celular servem a um único propósito: denunciar. Num mundo cada vez mais globalizado, os problemas das nações não se tornam particulares apenas a elas, e o diretor sabe disso. Não à toa, a Alemanha repetiu o feito da Dinamarca em 2022 e Suécia em 2023, que indicaram respectivamente como seus representantes um documentário sobre imigrantes de guerra do Afeganistão (Flee) e um thriller político com cenário no Egito (Garoto dos Céus), com o objetivo de potencializar uma narrativa que não iria ganhar voz pelo seu próprio país, mas que o mundo precisa escutar.
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Filme: A Semente do Fruto Sagrado (The Seed of the Sacred Fig) Elenco: Misagh Zare, Soheila Golestani, Mahsa Rostami, Setareh Maleki, Niousha Akhshi Direção: Mohammad Rasoulof Roteiro: Mohammad Rasoulof Produção: Alemanha, França Ano: 2024 Gênero: Drama, Suspense Sinopse: Um juiz investigativo do Tribunal Revolucionário de Teerã luta contra a desconfiança e a paranoia enquanto protestos políticos nacionais se intensificam e sua arma misteriosamente desaparece. Suspeitando do envolvimento de sua esposa e suas duas filhas, ele impõe medidas drásticas em casa, causando o aumento das tensões. Passo a passo, as normas sociais e as regras da vida familiar vão sendo suspensas. Classificação: 14 anos Distribuidor: Mares Filmes Streaming: Indisponível Nota: 8,0 |