É muito fácil, seja por parte da crítica ou do público geral, abraçar projetos que são singelos e grandiosos na mesma medida. Às vezes, o menos é mais. Um magistral exemplo disso é Flow: a animação da Letônia que se tornou um sucesso teria tudo para ser somente mais um entre os muitos filmes bonitinhos de baixo orçamento – entretanto, aqui, fica a prova de que uma boa ideia bem executada com muito zelo técnico e artístico não necessita muita pompa, equipe gigantesca e valores inestimáveis de investimento. O filme dirigido por Gints Zilbalodis, indicado a duas categorias no Oscar (melhor animação e melhor filme internacional), nos apresenta a história de um gatinho que vê seu lar devastado por uma inundação, e com isso, encontra refúgio em um barco com outras espécies diferentes de animais. A partir daí, ele percebe que unir-se aos seus novos amigos será mais do que necessário para sua sobrevivência.
Flow é uma animação que se destaca por sua originalidade. Todas as escolhas dos realizadores, desde o gráfico até a construção diegética onde a história de passa, é de encher os olhos. O sensacional projeto de Zilbalodis foi pensado para não possuir diálogo algum, o que é uma escolha certeira não somente pelo fato de enriquecer a mensagem central do filme, mas também por extrair o que de mais rico há no modelo do filme em animação: o poder de atingir diretamente todo tipo de público, seja adulto, criança, pessoas de diferentes países, culturas e etc. Não há artifícios de dublagens ou legendas: o foco é na imagem não verbal. Esse caminho nos proporciona um mergulho em cada signo que nos é apresentado visualmente; a comunicação além de mais direta, torna-se mais intimista com o espectador.
Em meio a tantos exemplos de filmes que retratam como o egoísmo e frieza humana se sobressai em cenários cruciais de sobrevivência, como em Expresso do Amanhã (2013), O Poço (2019), O Nevoeiro (2007), entre tantos outros que eu poderia mencionar como exemplo, uma singela animação a qual retrata a realidade de um lugar aparentemente povoado somente por animais vem para nos dar um “tapa na cara” ao retratar o poder da solidariedade e empatia. Não seria exagero falar que é inspirador, visto que toda harmonia e amizade que aos poucos é adquirida mutuamente entre aqueles bichinhos tinha tudo para dar errado, mas não acontece. Cada um tem sua “personalidade”, sua emoção particular, seu modo de lidar com determinadas situações, mas o respeito entre eles é o que sempre prevalece. O ar cômico que há nas cenas deles interagindo entre si é cativante, e ao mesmo tempo em que é divertido acompanhar sua convivência, é lindo ver os frutos de aprender a lidar com o diferente, e o longa se faz muito contumaz em sua filosofia interna e comportamental, ao redirecionar os personagens como uma alegoria de comportamento social. Como humanos, concluímos veementemente nos falta um senso de cooperação coletiva.
Um outro fator a ser enaltecido sobre Flow é o acerto de tom, que passeia sutilmente entre drama, aventura, e uma pitada de comédia nos momentos certos. A construção dos personagens é tão bem explorada, ainda que o filme não tenha uma longa duração, que se torna praticamente impossível não se envolver emocionalmente, uma vez que nos damos conta que, naquela infeliz situação, eles são obrigados a agir por instinto de sobrevivência. São bichos agindo como bichos. Nesse sentido, aliás, a narrativa é bem clara e não romantiza aquele cenário caótico a fim de manipular os sentimentos de quem está assistindo – como alguma animação da Disney poderia fazer facilmente, por exemplo -, ou seja, não escolhe partir para um melodrama trágico, quando a trama tinha muitas possibilidades de deslocar para esse lado. Afinal, todo o subtexto já é suficientemente trágico: nós, enquanto meros espectadores impotentes, assistimos a trajetória dos bichinhos vulneráveis naquele caos fortuito, torcemos (BEM aflitos, diga-se de passagem) para que tudo saia da melhor forma possível e saímos. Há sentimento de preocupação, angústia, aflição, inquietação por parte do espectador? Indubitavelmente, mas o melhor disso é que tantos sentimentos são genuinamente sentidos e provocados pelo constante senso de urgência que a narrativa busca abordar logo de início.
O olhar do Gato é como se fosse a nossa ótica sobre o mundo ao redor. O trabalho de som é ímpar aqui, juntamente com as imagens, nos proporcionando uma experiência sensorial, como uma ode à sinestesia (fica a dica externa ao leitor: é fortemente aconselhável assistir no cinema, para uma impecável imersão!). O gráfico da animação é belíssimo, convidativo e imensamente realista ao focar nas lindas paisagens, no céu, na floresta, nas águas, na natureza como um todo. E o quão irônica é essa dualidade de ver que algo tão belo pode ser ao mesmo tempo tão devastador… seria isso consequência das ações humanas? É um ponto de interrogação que ecoa timidamente pela trama, como um pensamento a se levar em consideração.
Para não ficar só na “rasgação de seda” (mais que justificável, prometo), é possível que condução com a proposta de quase emular um game juntamente com a trama simples e objetiva possa entediar o espectador mais ansioso acostumado com uma trama com mais “ação”, entretanto, é fato que o longa não deixa a peteca cair, tendo um ritmo eximio e bem distribuído em sua duração. Sua potente mensagem final é o que fica.
No final das contas, seria Flow uma espécie de coming of age felino? Bom… certamente! Na jornada do Gato, ele aprende muito com o seus amiguinhos; nós, enquanto espectadores, aprendemos muito com o bichinho. É realmente impressionante o quanto um filme que não possui diálogos tem tanto a dizer. Uma aula sobre altruísmo, empatia e amizade. Uma experiência sensorial, filosófica e reflexiva de como a vida só faz sentido quando entendemos que o diferente pode transformar o sentido da nossa existência.
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Filme: Flow Direção: Gints Zilbalodis Roteiro: Gints Zilbalodis, Matiss Kaza Produção: Letônia, Bélgica, França Ano: 2024 Gênero: Animação, Aventura Sinopse: Quando um gato solitário vê seu lar devastado por uma grande inundação, ele encontra refúgio em um barco povoado por várias espécies, e tem que se unir a elas apesar de suas diferenças. Classificação: Livre Distribuidor: Mares Filmes Streaming: Indisponível Nota: 8,0 |