O BAR LUVA DOURADA

O BAR LUVA DOURADA

Alguns cineastas utilizam o cinema de choque como os seus propulsores de emoções. Gaspar Noé faz muito bem isso, principalmente, em seu filme “Irreversível” (2002) no qual há uma cena extremamente longa de um estupro, Lars Von Trier também gosta desse tipo de cinema – sua filmografia é repleta de filmes assim como o seu mais recente “A Casa que Jack Construiu” (2018) – e ambos têm em comum a colocação de personagens femininas sofrendo todo tipo de violência e sendo meros instrumentos sexuais. Em O Bar Luva Dourada (2019), o mais recente filme do diretor alemão, Fatih Akin, há um exagero, bem caracterizado pelo estilo exploitation, de uma perversidade humana, colocando este filme como um extremo em sua categoria.

O longa, que possui pouco menos de duas horas de duração, não se exime de coragem para demonstrar as monstruosidades de um homem fisicamente deformado e, mesmo sem um background do personagem, amplamente traumatizado por inúmeros fatores, sendo a sua virilidade um deles.

Do início ao fim somos levados a um estado de paralisia promovido pela dor, pelo horror e por todas as situações abjetas que o diretor faz questão de explorar ao máximo em cada cena. O protagonista Fritz Honka (Jonas Dassler) – há de se elogiar não só a atuação que é magnifica, como também o trabalho de maquiagem que durava em torno de 3 horas diárias para ser feita – evoca o que há de pior na humanidade. Tento encontrar um personagem com tamanha maldade já representado no cinema, mas não consigo achar ninguém que chegue ao menos perto. Nomes como Jason, Hannibal Lecter e Michael Myers, juntos, não são tão cruéis quanto Honka.

Neste longa temos basicamente três espaços bem caracterizados: o apartamento de Honka, localizado no último andar (sótão), o Bar Luva Dourada e o caminho entre estes dois lugares. O apartamento de Honka possui diversas paginas de revistas com mulheres nuas coladas nas paredes, algumas bonecas espalhadas pelo imóvel e uma total desorganização e sujeira. Somos capazes de sentir o cheiro, principalmente, quando ouvimos outros personagens reforçarem esse sentido assim que adentram o apartamento. O bar tem seus clientes como verdadeiros arranjos. Cada um com suas especificidades, como os apelidos que possuem, mas todos compartilhando o mesmo sentido de nada mais fazer sentido em suas vidas. O Bar Luva Dourada é o fim de linha para muitos que estão ali, mulheres e homens. No caminho entre estes dois lugares, que personificam a escória do mundo,há um convento/igreja que funciona, por duas vezes, como uma força maior. A primeira evitando que mais uma mulher se tornasse vítima, e a segunda em uma cena na qual temos um acidente inesperado. Nesta cena em questão posso ressaltar o ótimo trabalho feito com o design de som que em diversos momentos se destaca pelas minúcias do que ouvimos e pela forma impactante que por vezes se manifesta.

Há realmente um trabalho técnico sendo feito por trás de tudo o que assistimos. Não só na maquiagem ou no som, mas na direção também. Akin encontra soluções para as exposições que tem interesse em mostrar de uma forma que, ironicamente, esconde parte do quadro. Em uma das primeiras cenas, suas escolhas de posicionamento de câmera permitem que saibamos tudo o que está acontecendo e quais são os próximos movimentos de Honka. Enquanto estamos boquiabertos sem acreditar que em menos de 4 minutos já estamos presenciando aquele horror, Akin muda sua câmera para que vejamos somente o movimento dos braços de Honka e ao ouvirmos o som do serrote, não conseguimos esconder nosso pavor pelo que percebemos estar acontecendo. Além disso a câmera estática, mostra a frieza do personagem dando um ar natural a ele para aquilo que acabara de fazer.

Por mais que Fritz Honka seja considerado um Serial Killer, existe nos atos realizados pelo personagem, pelo menos na sua retratação aqui, uma ausência de assinatura e, por isso, tenho algumas ressalvas ao termo empregado para este personagem do filme. As semelhanças que envolvem as vitimas são parte de um contexto completamente aleatório que só quem conseguiria decifrá-lo é o próprio Honka.

Muito embora o diretor defenda que o personagem consegue tirar de nós uma empatia quando está em seu hiato de maldade, eu sinto frustrar essa percepção que o diretor tem de nós, pois não há um momento sequer que se vislumbre qualquer mudança no personagem. Ainda que ele se vista melhor e transmita uma imagem de alguém comum, o lugar para onde volta toda noite é a representação de quem ele, verdadeiramente, é. Sujo, asqueroso, repugnante, vil e todos esses adjetivos são provenientes da sua absoluta misoginia. Suas relações com as mulheres são dotadas de um completo desprezo por quem elas são, o que sentem e o que querem. E o longa, de forma simplista e talvez até equivocada, coloca essas mulheres como peixes fisgados por uma simples garrafa de bebida.

Gaspar Noé e Lars von Trier são constantemente chamados de machistas e misóginos pelo teor dos seus filmes e em como idealizam a mulher. Fatih Akin já pode entrar para o mesmo time, pois todas as mulheres servem com o único propósito de seguir os homens e de atender aos seus desejos, até aqueles mais repugnantes. Até mesmo a personagem Petra (Greta Sophie Schmidt), que parecia ser relevante para a trama trazendo um contraponto das mulheres que cruzam o caminho de Fritz, se mostra como uma mulher que apenas segue mais uma figura masculina.

O Bar Luva Dourada, filme baseado no serial killer Fritz Honka (1935-1998), é pesado, forte e seu tom, embora contrastado com uma trilha sonora festiva, é completamente obscuro a níveis hediondos. O filme, por mais que seja uma adaptação, foca muito na exposição da maldade. O mal pelo mal, sobretudo, nas circunstâncias dessa história não rende qualquer tipo de sentimento que não seja a repulsa. Ao terminar o filme, precisei de alguns segundos para respirar e entender aquilo que eu tinha acabado de assistir. O estado de choque é real, mas se valer só por isso é muito pouco para uma obra que se propôs a tanto e ficou presa apenas em uma camada da história que queria contar.


Filme: Der Goldene Handschuh (O Bar Luva Dourada)
Elenco: Jonas Dassler, Margarete Tiesel, Adam Bousdoukos, Katja Studt, Marc Hosemann, Philipp Baltus, Laurens Walter, Greta Sophie Schmidt
Direção: Fatih Akin
Roteiro: Fatih Akin, Heins Strunk
Produção: Alemanha, França
Ano: 2019
Gênero: Suspense
Sinopse: Hamburgo, 1970. Fritz Honka é um homem fracassado, com o rosto deformado, que vagueia pelas noites de um bairro boêmio ao redor de outras almas perdidas. Ninguém desconfia que, na verdade, Fritz é um serial killer. Ele persegue mulheres mais velhas e solitárias que conhece no “The Golden Glove”, seu bar favorito, e as esquarteja em seu apartamento imundo. Quando os jornais começam a noticiar o desaparecimento sucessivo de várias mulheres, o medo e o caos se instalam na cidade. Baseado na história real de um criminoso socialmente violento, impulsionado pela misoginia, ganância sexual e sentimentalismo.
Classificação: 18 anos
Distribuidor: Imovision
Streaming: Reserva Imovision, Globoplay
Nota: 6,8

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