CRÍTICA – MICKEY 17

CRÍTICA – MICKEY 17

Mickey 17 é um filme sci-fi no mínimo excêntrico, fora da casinha. Acompanhamos o desenrolar e consequências das “aventuras” de trabalho de Mickey Barnes (Robert Pattinson), que embarca numa expedição especial colonizadora em que, após realizar experimentos e missões letais, uma nova versão dele surge a cada morte, fazendo um backup de suas memórias (o detalhe é que ele encara isso por escolha própria). É o conceito de “dar a vida pelo trabalho” sendo levado a ferro e fogo. A crítica ao sistema capitalista usando essa dinâmica de descartabilidade do trabalhador nos faz refletir sobre muitas questões: até que ponto estamos dispostos a nos sacrificar em prol de um sistema? Nossa mão de obra é valorizada como deve ser? Onde de fato reside nossa individualidade? Somos tão facilmente substituíveis?

Não demora muito para notarmos uma certa semelhança com Black Mirror, pelas pitadas de humor um tanto macabro, juntamente com as críticas acerca das tecnologias que a série costuma trazer em seus episódios. O novo longa de Bong Joon-ho também nos remete de imediato ao estilo e proposta de outros filmes do próprio cineasta, como Expresso do Amanhã e Parasita, sobretudo por trazer, novamente como foco central, a crítica sobre a diferença de classes, capitalismo, meritocracia e afins, assuntos que o diretor já demonstrou extremo interesse em explorar. Contudo, enquanto Parasita aposta num terreno mais sugestivo e implícito, Mickey 17 possui zero sutilezas em sua crítica central; elas são intencionalmente escancaradas, caricaturais. A começar pela ideia de pessoas ambiciosas, que estão no poder, quererem explorar e colonizar uma terra a qual não lhes pertence, a fim de “purificar” a raça humana, cuspindo seus preconceitos em alto e bom som, e explicitando ao espectador para onde o filme quer redirecionar sua intenção. Não há margem para interpretações em aberto, o texto do filme é direto e reto.

Essa transparência de pautas funciona porque, ao mesmo tempo em que o diretor “cutuca a ferida” com o seu roteiro, nota-se um divertimento na forma como ele escolhe conduzir a história, inevitavelmente atingindo também o espectador. O humor peculiar e esquisito nos faz rir das mais excêntricas situações (aquele famoso “rindo, porém com respeito”). Aliás, a escolha do humor caricatural de Mickey 17 a fim de consolidar seu texto satírico também remete ligeiramente ao caos que Ruben Östlund trouxe em Triângulo da Tristeza (filme bem divisivo e controverso, mas que sempre gera debates quando mencionado), seja pela crítica em relação à disparidade econômica, pelos personagens com personalidades marcantes, pelos diálogos espertos e jocosos, e/ou principalmente por conta da extravagância nas muitas cenas de comédia – como a emblemática cena onde Mickey janta com Ylfa e Kenneth Marshall, com direito a desmaios e vômitos. Logo, Mickey 17 é um filme que poderia cair no conceito de ser um “mais do mesmo” por correlacionarmos ele a diversas outras obras com ideias semelhantes, mas há algumas diferenciações que fazem o filme se destacar, mesmo com a repetição de tema. Afinal, todo o tema possível já foi contado, abordado ou discutido nas telonas: a questão chave é COMO será feita a discussão do tal tema, seja ele recorrente ou não. Joon-ho consegue fincar vários acertos aqui.

A narrativa em primeira pessoa é um desses acertos, uma vez que gera uma construção mais intimista a fim de entendermos melhor as diversas camadas em relação a Mickey: o que teria o motivado a entrar naquele programa numa missão praticamente suicida, tornando-se parte dos “dispensáveis”? Escolher ser um dos trabalhadores que se sacrificam em prol de ideias megalomaníacas advindas de pessoas que estão no topo da pirâmide hierárquica da sociedade só evidencia o quanto Mickey está sem perspectivas de futuro ao se colocar como uma figura digna de desprezo, de ridicularização, de descarte. O próprio se inferioriza ao aceitar o rótulo de fraco que teria dado a si próprio; para, mais tarde, ver essa construção de autoimagem sendo esfacelada pelas suas vivências. Naquelas missões, ele não é inútil, muito pelo contrário: ele é a cobaia que testa o que funciona ou não, e o que não funciona custa literalmente sua existência! Ao se dar conta de todo esse cenário, do quão ele percebe que é ruim morrer, do quão ele se preocupa com o que suas versões anteriores viveram, logo se esculpe outras visões sobre si mesmo e sobre os altos e baixos da existência.

Ele ter que literalmente nascer de novo para reconhecer o seu valor faz vir à tona inúmeras questões sobre identidade: o que nos torna únicos? Nosso corpo, nossa personalidade? As memórias? Acompanhamos ele sentir medo, culpa, arrependimento, remorso, várias oscilações de pensamento e visão de mundo conforme suas diversas réplicas vão morrendo no meio da execução das perigosas missões. Seja por palavras, gestos ou olhares, vemos um amadurecimento um tanto filosófico por todas as implicações a respeito das vidas de Mickey e de tudo o que está ao seu redor. Tudo o que os seus olhos veem, desde a primeira imagem do filme, é a perspectiva que vamos acompanhar. Isso gera uma conexão genuína entre personagem e espectador.

Outro destaque é o fato do humor como base central da crítica funcionar bem – não somente por construir boas sequências de comédia, mas pelo fato de escancarar que a classe que está no topo é que a que deve ser vilanizada e ridicularizada. A falta de sutileza do texto, não por acaso, acaba sendo o maior combustível para fazer as alegorias do longa irem para frente. O filme passeia por um teor cômico mais sagaz, mais “nas entrelinhas”, sobretudo nos diálogos, para, aos poucos, ir abraçando um humor mais pastelão – de gente rolando na escada do nada a peidos. É praticamente impossível não achar hilário. Mark Ruffalo interpretando Kenneth Marshall é algo irritantemente cômico. Um personagem canastrão, claramente desprezível, com uma visão de mundo completamente abominável e que, ao mesmo tempo, vemos que é um ser patético. Toda a sua imagem e representação é digna não somente de desprezo, mas também de escárnio (bem como o que sentimos, por exemplo, quando nos deparamos com o Adenóide Hynkel do filme O Grande Ditador). Esse ar caricatural obviamente não é por acaso. O uso do exagero para potencializar a crítica ao totalitarismo político é uma escolha ousada, e também lúcida.

Um dos pontos que não funcionam com tanto brilhantismo em Mickey 17 é a forma como o longa, por vezes, torna-se esparso devido aos acontecimentos serem um tanto episódicos, isolados. Ou seja, acontece algo aqui, algo ali; uma sucessão de acontecimentos meio jogados, sem muita continuidade ou aprofundamento. Como, por exemplo, o interesse da moça Kai Katz (Anamaria Vartolomei) por Mickey… Onde isso “resulta”? Qual o desfecho? Não tem. É brevemente pincelado e logo largado. Bem como a maravilhosa e chistosa cena de um quase ménage entre Mickey 17, sua namorada Nasha (Naomi Ackie) e Mickey 18…Onde isso “resulta”? Qual o desfecho? Infelizmente não tem. Também há uma lacuna aberta sobre a questão dos debates éticos sobre a clonagem: a forma como a utilizam, como isso afeta as pessoas que foram clonadas, a questão dos limites do consenso… mais um tópico que não ganha o devido aproveitamento.

Vemos várias ideias promissoras em decorrência do surgimento do Mickey 18 – replicante que causa problemas pelo simples fato de somente existir – que nos proporciona boas cenas, mas alguns acontecimentos são tão inconclusivos que quase soam como esquetes no meio do roteiro, causando frequentes mudanças de tom que infelizmente não funcionam o tempo todo. Isso porque o filme quer abordar a existência miserável de Mickey, suas crises existenciais, reflexões e conflitos internos, criando uma atmosfera um tanto deprimente, melancólica e pessimista a certo nível; para mais tarde, num estalar abrupto, saltar dessa contemplatividade para apostar nessas cenas mais escrachadas, extravagantes, espertas. Isso faz com que o filme seja um constante zigue-zague; o diretor brinca com as diversas possibilidades narrativas de gênero e tom, de modo que nos deixa com sentimentos controversos e oscilantes, tais como as emoções do próprio personagem. Nessa densidade de subtramas, o longa quase deixa a peteca cair por alguns momentos, mas se reestabelece imediatamente por não se deixar fugir do escopo.

Dentre várias de suas críticas, o longa ainda pincela brevemente um paralelo sobre a crueldade contra animais, ao mostrar a forma como os poderosos lidam com aqueles “bebês aliens”, que são encontrados naquele novo planeta, seja os manipulando e os torturando para consolidar seus objetivos, seja até cortando o rabo de um deles no intuito de fazer um molho – a personagem Ylfa (Tony Collette) é a personificação da futilidade e estupidez. Em suma, é o filme martelando incessantemente uma sequência de situações diversas de como o ser humano nefasto, com sede de poder, consegue destruir a seu semelhante, a seu diferente, aos animais, a alienígenas, a si mesmo…

Apesar dos toques de humor mórbido a todo vapor, acompanhar tamanha alienação em massa, ainda que sob uma ótica ficcional, é de nos fazer temer sobre o futuro, sobre onde podemos chegar nos próximos anos. Porém, com um final mais confortável e otimista, nos soa como “uma luz no fim do túnel”; podemos pensar que ainda há muitos “Mickeys” por aí, com coração bom, intenções genuínas. Pessoas dispostas a reconhecerem e buscarem seu lugar no mundo, a refletirem que ser escada para pessoas ruins alcançarem seus objetivos vis definitivamente não é a melhor opção.


Filme: Mickey 17
Elenco: Robert Pattinson, Naomi Ackie, Steven Yeun, Toni Collette, Mark Ruffalo, Holliday Grainger
Direção: Bong Joon-ho
Roteiro: Bong Joon-ho
Produção: Estados Unidos
Ano: 2025
Gênero: Ficção Científica, Fantasia
Sinopse: Um colaborador é enviado em uma expedição humana para colonizar o mundo frio de Niflheim. Ao morrer, um novo corpo é regenerado com a maioria de suas memórias intactas. Porém, após dezesseis mortes, Mickey começa a perceber que sua existência não é tão simples quanto parece.
Classificação: 16 anos
Distribuidor: Warner Bros
Streaming: Indisponível
Nota: 7

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