Sendo entusiasta do gênero de terror, todas as vezes que me deparei com o trailer de Pecadores eu fiquei minimamente instigado em querer assistir ao longa-metragem, o que já é um mérito por si só em uma época de trailers que mais desanimam do que conquistam o crítico aqui presente. Surgiu a oportunidade, vi vários elogios de outros meios de comunicação em relação ao filme, os pontos foram somados e aqui estou para agregar também.
Pecadores tem, enquanto temática central, o elemento cultural do músico que beira ao mágico dotado de dons ritualísticos para curar espíritos e invocar certa aura transcendental. É comentado sobre as várias manifestações dessas figuras ao redor do mundo, porém seu foco é na figura do griô que é presente nas culturas africanas. Ao mesmo tempo que possui esse encantamento e poderes curativos, o outro lado da moeda também existe: o potencial risco de atrair figuras malignas que cobiçam esse poder. Estamos em 1932, acompanhando um trio de protagonistas: Sammie Moore (Miles Caton), nosso músico que toca violão, e os irmãos Fumaça e Fuligem – Elijah e Elias – (Michael B. Jordan faz ambos os gêmeos). A dupla compra uma serraria no início do filme para abrir um clube de blues, que seja um reduto seguro para a população negra se divertir (e eles lucrarem com essa atividade), e, simultaneamente, incentivar o primo Sammie (que é apelidado de pastorzinho porque seu pai é um líder religioso local) a seguir a carreira musical devido aos seus talentos.
Contamos com um elenco bem estruturado: Beatrice (Tenaj L. Jackson), par romântico de um dos gêmeos; Delta Slim (Delroy Lindo), um musicista velho talentosíssimo; Mary (Hailee Steinfeld), interesse romântico de outro gêmeo; o casal Chow (Li Jun Li e Yao); Pearline (Jayme Lawson), paixão imediata de Sammie; e Remmick (Jack O’Connel), o grande vilão da nossa trama. Todos estão trabalhando bem ao longo do filme, mas o destaque vai para Michael B. Jordan, que consegue engajar tão bem nas diferenças e similaridades dos gêmeos que é possível questionar se o ator não possui mesmo um irmão interpretando seu papel. A integração da figura duplicada através dos efeitos especiais, jogos de perspectivas e ângulos e o uso claro de um dublê para ângulos que não tenham o foco em seu rosto deixam a experiência perfeita a ponto de nos ludibriar. Considerava que sua melhor atuação, até hoje, estava em Creed (2015), apesar do excelente papel vilanesco em Pantera Negra (2018), porém Pecadores brilha seu protagonismo criando presença e conquistando o público com um carisma genuinamente bem estruturado e nada forçado. Nos afeiçoamos pela dupla e notamos as diferentes nuances de personalidade entre os gêmeos.
O longa-metragem possui diferentes arcos narrativos, o que gera uma mescla de altos e baixos (mas já adianto que o filme sai com um salto muito mais positivo do que negativo) e uma certa sensação de que houve muitas ideias e vários disparos criativos foram dados para encaixar tudo na mesma trama. Certos elementos são bem trabalhados e desenvolvidos, outros ficam de escanteio e suas resoluções acabam não importando ou parecendo apressadas e desconexas do todo. Dialoga com o clássico Um Drink no Inferno (1996), em que o início do filme contrasta completamente com a manifestação do sobrenatural em determinado momento da trama, causando estranheza, confusão e adrenalina. Se não fossem os trailers (e talvez pudessem ter ousado mais nessa perspectiva) entregando que haveria a presença de certo elemento estranho (algo sobrenatural, mas não discernirmos o que) talvez ficássemos tão surpresos quanto em Um Drink no Inferno, que nos pega completamente despreparados para a loucura no bar em seu clímax e encerramento. Vamos, então, entender o que promove esses altos e baixos.
– AVISO DE SPOILERS AO LONGO DE TODA CRÍTICA A PARTIR DO PRÓXIMO PARÁGRAFO –
A narrativa inicial chamarei de “arco pé-no-chão” no qual nenhum elemento sobrenatural é apresentado – com exceção da primeira cena pós-monólogo de abertura, que comenta sobre o elemento histórico-mágico dos músicos e acompanhamos Sammie chegando à igreja de seu pai, ao amanhecer, todo escoriado e machucado segurando somente o braço de um violão; aí vemos flashes muito rápidos de algo que ocorreu anteriormente. Ao término dessa provocação inicial, a narrativa volta ao famoso “um dia antes” para testemunharmos o que levou o personagem àquele estado; assistimo o trio de protagonistas e as suas andanças pela região em busca de conseguir fazer a noite de abertura de seu Clube de Blues. São estabelecidos aqui (em um longo tempo de tela, praticamente 1/3 do filme) as personalidades, conflitos, interesses, vontades, desejos, frustrações e amarguras do trio de protagonistas e suas relações com o restante do mundo.
Fumaça e Fuligem retornaram de Chicago após executarem alguns negócios que soam não muito honestos, revisitando sua região de nascença e entrando em contato com velhos amigos e pares românticos. Ficamos engajados por inteiro na narrativa tão rotineira e bela, construindo com exímio a ambientação dos Estados Unidos na década de 1930, durante a Lei Jim Crow em que ainda havia separação socioespacial entre brancos e negros. É construída toda uma tensão racial do respectivo período quando os gêmeos fecham a compra da serraria, que será a sede do clube, e mencionam a intenção de evitar o interesse da K.K.K evidenciando uma periculosidade que permanece no ar. Outros segmentos realçam ainda (e até os dias atuais) as várias violências testemunhadas pelo povo negro nesse período, porém não foca só nas desgraças, exaltando os elementos culturais específicos desse povo nos Estados Unidos.
O segundo ato narrativo é onde o sobrenatural irá se manifestar: vampiros com um consciente coletivo. Acompanhamos o avançar da noite no clube, as danças e os festejos (há um determinado momento em que se manifesta a melhor cena do longa-metragem inteiro, o que será comentado mais a frente) e, simultaneamente, a chegada do antagonista. Aqui nos deparamos com um clássico clichê das narrativas envolvendo hordas: o grupo está preso em um lugar e os inimigos os rodeiam; completamente envolvidos pela tensão, eles aguardam a morte dar seus primeiros passos para ruir a pequena zona segura – já vimos isso no clássico A Noite dos Mortos-Vivos (1968) e em O Nevoeiro (2007), e poderíamos citar infinitos exemplos. É usado um mito antigo dos vampiros que é a necessidade de permitir a entrada da criatura, o que se torna raro a cada nova manifestação; ela deve ser convidada a entrar e é isso que impede a horda de criaturas de adentrar no Clube e ceifar as vidas do nosso elenco principal.
O filme não segura em suas cenas gore, mas também não há nada de absurdo e que impressione. Um elogio é que o ritmo não para, dado a poucas enrolações quando a ação se inicia e os conflitos internos/externos das personagens as colocam em desafio pela sobrevivência. É estabelecida uma excelente aura de insegurança (com exceção de Sammie, pois, como testemunhamos sua chegada à igreja na cena de abertura, existe a garantia de que pelo menos o garoto sobreviveu) em que ninguém do elenco está protegido das garras das criaturas que, com uma mordida, já infectam com o consciente coletivo do antagonista principal Remmick. É interessante a composição das criaturas, pois elas compartilham memórias e lembranças uma das outras, usando disso para tentar seduzir aqueles com quem possuíam afeto e relações quando ainda estavam vivos. Remmick é uma figura curiosa, gerando certa instiga para saber mais de seu passado e conquistando com sua malignidade diabólica.
O terceiro e último ato (antes do epílogo) é o pós-noite, em que Sammie e Fumaça saem vivos dessa situação caótica. Sammie retorna para a igreja paterna, chegando atrasado no culto e com seu pai buscando convencê-lo a abandonar o violão (outro “sobrevivente” da noite somente com o braço de notas, pois sua base foi utilizada para rachar a cabeça de Remmick); Fumaça fica no Clube aguardando a chegada dos membros da K.K.K, afinal Remmick diz que um dos infectados é filho dessa liderança local do grupo racista. Fumaça perde sua vida combatendo e matando todos os presentes, utilizando de sua experiência na 1° Guerra Mundial, falecendo e chegando ao outro mundo para reencontrar sua mulher (Beatrice, que perde a vida ao longo da noite para as criaturas) e a filha, que havia morrido anos antes da narrativa ter seu início.
Esse é o ponto de maior incômodo dos altos e baixos do filme: essa divisão entre as três partes (e elas são destoantes tematicamente) faz com que as conclusões do terceiro ato – especificamente de Fumaça – aconteçam de maneira muito apressada e aleatória. Não foi construída, além das poucas menções e as falas diretas de Remmick, a questão da K.K.K. e, quando testemunhamos esse último conflito, não é gerado muito impacto (nem mesmo pelo entretenimento de observar racistas sendo fuzilados) além da própria cena de Fumaça seguindo para o pós-vida. Aí advém a mescla de conflitos em relação ao filme (e seu ponto mais baixo): o primeiro ato é imersivo e é completamente aceitável enquanto narrativa; se não houvesse absolutamente nada de sobrenatural e focasse somente em pautas raciais do período, mantendo a coesão temática do conflito final de Fumaça com os membros da K.K.K., sem excluir a questão mágica da música (e da temática do Blues e toda a exposição cultural do delta no Mississipi), continuaria sendo um baita filmaço – e que gerou vontade de assistir mais filmes com essa proposta. Ela bate diretamente de frente com a temática sobrenatural em que o terror predomina, mas será que é realmente necessário? Por isso soa destoante, não sai totalmente bem digerido e parece que existem vários filmes dentro do mesmo longa-metragem.
Mas, vamos ao que realmente importa e que se o restante do longa-metragem fosse horrível somente essa única cena manteria o potencial de continuar presa em nossa memória e campo visual: Sammie cantando Blues e evocando a espiritualidade musical coletiva. É de tamanha poesia visual e sonora que senti o corpo inteiro arrepiar e até mesmo certas lágrimas ameaçarem correr pelo rosto. Enquanto todos no cenário dançam com a música de Sammie, espíritos do passado e do futuro se conectam com aquela cadência de tempo, transcendendo a realidade e dialogando com o eterno reinterpretar cultural, nos embalando em um mundo que vive diante do passado, presente e futuro, sendo aquele exato momento o feixe do colar desses períodos históricos. O Blues que encanta os griôs da antiguidade, que dialoga com o rock n’roll hippie da década de 1980, e que é abraçado pelo Hip-Hop da década de 1990 e as danças do pop dos anos 2000, sem esquecer as outras práticas culturais evocando danças até mesmo da China – do passado ancestral do casal Chow. É um grande elo de união comum, a musicalidade capaz de encantar povos e de quebrar as barreiras culturais pela apreciação dos dotes espirituais daqueles que dominam a magia das notas para entonar poesias sonoras. É tamanha potência que é exatamente essa magia de Sammie que atrai os espíritos vampirescos cobiçosos por seu talento.
E existem vários momentos musicais, afinal ela faz parte da composição narrativa, nos levando para frente e trazendo ao passado para conectar os diferentes segmentos da história. É a parte mais coesa e envolvente, pois não dá para citar uma única melodia que beire ao esquecimento ou ao tédio, aproximando o filme quase do gênero musical, mas sem forçar os limites de danças aleatórias e personagens simplesmente do nada valsando. Cada melodia é meticulosamente bem posicionada para não quebrar com a verossimilhança. Não sou o maior fã dos musicais (consigo contar nos dedos os filmes do gênero de que realmente gosto), mas caso o filme encaixasse nesse tipo temático entraria facilmente em minhas listas de recomendação.
Um último ponto para ser comentado antes da conclusão é a valorização de diversos elementos culturais africanos presentes (obviamente) e da própria cultura afrodescendente estadunidense, que é bem trabalhada mesmo sem ser a protagonista do filme enquanto tema. Ela se manifesta em detalhes que têm sua serventia para a narrativa, entretanto não a preenchem por inteiro. É legal, mas realça as várias direções que tentaram ser tomadas. Alguns caminhos deram certo, outros ficaram ainda em construção…
Para conclusão, é um pouco frustrante não ter sido um espetáculo a parte esse longa-metragem; está longe de ser o melhor filme do diretor Ryan Coogler e cai nas armadilhas dos mais variados e absurdos elogios da crítica. Talvez tenham colocado minha expectativa tão alta (e fui vítima de permitir ela ter crescido nesse ponto), que a experiência final foi muito boa, mas longe de ter causado as mais absurdas reações. Não soube muito bem como me sentir pelas várias direções em que o roteiro corre. Pecadores é um excelente filme, porém está distante de receber o título de melhor filme do ano (até o momento lançado). Existem vários fios não tão bem amarrados, mas é uma obra que ainda vale a pena demasiadamente ser assistida!
![]() |
Filme: Sinners (Pecadores) Elenco: Michael B. Jordan, Miles Caton, Tenaj L. Jackson, Delroy Lindo, Hailee Steinfeld, Li Jun Li, Yao, Jayme Lawson, Jack O’Connel Direção: Ryan Coogler Roteiro: Ryan Coogler Produção: Estados Unidos Ano: 2025 Gênero: Ação, Drama, Terror, Horror, Thriller Sinopse: Dispostos a deixar suas vidas conturbadas para trás, irmãos gêmeos retornam à cidade natal para recomeçar suas vidas do zero, quando descobrem que um mal ainda maior está à espera deles para recebê-los de volta. Classificação: 16 anos Distribuidor: Warner Bros. Pictures Streaming: Indisponível Nota: 8,0 |