CRÍTICA – UMA HISTÓRIA REAL

CRÍTICA – UMA HISTÓRIA REAL

Tudo bem, essa era a única pendência que ainda tinha da cinematografia de David Lynch. É quase alienígena, pois mesmo em O Homem Elefante (1980) há certos elementos lynchianos em sua composição – até pelo próprio visual do protagonista. Aqui não, estamos em um filme biográfico que conta uma história simples, um road-movie sentimental e com um estudo de personagem muito bem elaborado com o objetivo de promover reflexões sobre os elos que verdadeiramente formam uma família. Digo que foi uma experiência bem singular ver David Lynch contido no realismo sem sequer uma singela menção de reinos oníricos ou momentos caricatos que tocam em reações caricatas usuais de suas personagens. Uma História Real

Lógico, a escolha da história e a maneira que nosso protagonista Alvin Straight (Richard Farnsworth) viaja é surreal pela sua própria natureza, fugindo completamente do convencional, tocando no eixo de Lynch se interessar pelo não usual, por histórias simplórias e com um alto valor de emoção e conectividade humana. Mas é realista, estruturada em uma verossimilhança equivalente à nossa realidade empírica, sem quebras de micro ou macronarrativa. Graças a isso, talvez seja seu filme menos comentado e o que sempre adiava em assistir pelo pouco entusiasmo em narrativas do gênero conforme seguia na cinefilia. É bom às vezes retomar as origens e relembrar as belezas das histórias realistas que focam na estrutura emocional de uma única personagem.

Acompanhamos Alvin Straight após receber a notícia de que seu irmão teve um ataque cardíaco decidindo visitá-lo. Com problemas de saúde, tem limitações físicas e sua visão está comprometida parcialmente levando-o a não conseguir retirar uma carteira de motorista. Seu irmão mora a mais de 300 quilômetros de distância, mas isso não impede sua vontade de revê-lo para apagar as ofensas do passado, visando restabelecer esse vínculo que era tão belo. Sua solução? Viajar em um simples cortador de grama até o destino. Ao longo dessa viagem vários encontros, diálogos, reflexões e paradas para reencontrar a si mesmo. Um filme de simplicidade peculiar e belezas para apreciar aquilo que, em uma rotina acelerada, está longe do alcance da realidade contemporânea. A história real e a própria narrativa do filme estão distantes de serem concebíveis em dias de ansiedade, tecnologia e otimização máxima do tempo e desempenho.

O máximo mérito, e que eleva esse filme a uma obra capaz de capturar nossos sentidos, é a atuação de Farnsworth. É difícil encontrar palavras para expressar todas as sensações que a sua incorporação da personagem transmite. David Lynch compreende o talento do ator usando e abusando, junto do diretor de fotografia, dos close-ups, principalmente nos olhares que transmitem tudo que, nas mãos de alguém menos competente, precisaria de narrativas internas expositivas ou diálogos extensos para transmitir o que está sendo vivenciado pelo protagonista. Aqui temos uma expressão, um olhar, um sorriso, uma flexão muscular que adentram em nossa mente fazendo-nos experimentar o que a personagem está sentindo.

Seu conflito é com a idade – afinal, Alvin tem seus 72 anos –, encarando a questão de estar velho, de perceber que seu tempo é diferente da sociedade em que vive, de seu mundo não ser o mesmo que dos jovens. Não há uma romantização da velhice; o filme traz uma mente que está corroída pela idade, de alguém cansado e cheio de traumas e memórias, memórias que envolvem suas experiências passadas. Alvin Straight é veterano da Segunda Guerra Mundial deixando muito claro em uma interação com outra personagem veterana que esse passado jamais será apagado. Os rostos em sua memória continuam jovens, mas ele envelhece. Tantos rostos que nunca envelheceram… É um diálogo que repuxa as cordas do coração gerando uma mescla de sentimentos confusos que dificilmente aqueles que não testemunharam essa experiência são capazes de apreender por mais esforço que façam, mas não significa que a conexão com esses sentimentos não exista; tudo é reforçado pela magnífica capacidade de expressões do ator.

Sua simplicidade em ser – conclusão de como viver nesse mundo insano e cada vez mais acelerado – é uma realidade de cidade pequena. É feliz com os outros amigos idosos (grande parte do elenco é composto de atores em idade avançada) e, principalmente, com seu amor pela filha Rose (Sissy Spacek). Sua risada e felicidade, até mesmo por meio de uma ligação para dar notícias à filha, deixam o coração quentinho de ver o amor transpirar pelo ar. São momentos em que apreciam a chuva juntos, observando a beleza da natureza, sem nenhuma intervenção artificial de luz, juntos em silêncio, plenos na companhia um do outro. Mesmo solitário na estrada não abandona essa ritualística de observar as estrelas, observar a chuva, preocupado somente com seu tempo de viagem. Daí advém sua motivação de restabelecer contato com seu irmão, voltar aos velhos dias de infância em que deitavam juntos no chão para ver as estrelas.

Essa viagem é necessária e solitária, algo atestado pelo próprio protagonista que a vê como um desafio de humildade e autorreflexão sobre a questão de orgulho pessoal. Esse orgulho corroeu sua relação familiar e, mesmo com todas as tragédias que ele relata ao longo dessa viagem, os fragmentos de memórias que capturamos em suas exposições reforçam sua convicção em ainda (mesmo que nunca admita) amar e viver sua vida. Ele precisa completar a viagem em seus termos, somente assim estaria verdadeiramente preparado para rever seu irmão.

Quando somamos com o trabalho mediúnico de Angelo Badalamenti na composição da trilha sonora, tudo é exaltado. Posso falar mais mil vezes e repetir que o talento desse homem e essa parceria promoveu uma das melhores listas de músicas para a história do próprio cinema. Ela exalta o cansaço de um coração envelhecido, cheio de cicatrizes e marcas de melancolia, tristeza e dificuldades, mas simultaneamente a beleza que ainda possui, uma beleza que reflete os próprios ambientes em que observamos o filme, em um Estados Unidos do interior, simples e de ritmos distantes da modernidade tecnológica das grandes cidades.

A experiência pessoal em relação ao filme toca profundamente ao relembrar os dias da juventude perdida. Dias em que o mundo parecia poder ser encarado com leveza e paz – características cada vez mais raras de encontrar a cada novo ano que passa – e com pilares sociais menores, mas bem estruturados e fortificados. Ver através dos olhos de Straight esse reflexo, esse espelho entre passado, presente e futuro faz o peito se encher de emoção. Em determinada interação com jovens em um acampamento que o acolhe durante sua viagem, Straight solta uma de suas falas que resume muito bem seus sentimentos:

“Qual a pior parte de ficar velho Alvin?”.

“Relembrar quando você era jovem”.

Os causos de estrada também refletem simplicidade, encontrando indivíduos dispostos a auxiliar ou, no mínimo, acolher Alvin ao longo de cada nova localidade que chega. Não existem tensões (com exceção de uma única cena), persiste esse “espírito de sociedade” que parece ter se apagado da identidade estadunidense cada vez mais extrema e individualizada. Isso chega a ser pouco concebível como verossimilhante numa época e num país tão marcado pela lógica neoliberal, competitiva e que abandona as noções de cooperatividade. Parece um cenário até idealizado demais, utópico e distante da realidade, longe dos realismos que qualquer um poderia imaginar.

Existem momentos cômicos bem planejados no roteiro que não quebram de forma alguma com a seriedade do filme ou que destoam demais. Momentos em que o sorriso se manifesta em nossos rostos com tamanha naturalidade que nem mesmo percebemos o quentinho que acalenta nossos corações, ainda mais valorizando tanto um elenco que é majoritariamente da terceira idade. A cena final é tão direta e simplória, focalizando por completo no talento do nosso ator principal e na participação rápida, mas memorável de Harry Dean Stanton (Lyle). Poucas palavras e muitos olhares. Uma simples pergunta e uma simples reação de ambos os lados. Os irmãos reunidos…

Talvez essa seja a crítica de mais difícil elaboração, pois, além da limitação de palavras para conseguir descrever o amálgama de absolutas emoções que esse filme produziu, preciso conter as emoções a cada novo trecho relembrando a delicadeza da montagem de cada cena. Com certeza será o texto mais curto de todas as críticas dos títulos de David Lynch, mas, pelo absoluto contrário, o filme que mais causou emoções a ponto de chorar. Quase dá para classificar como um longa-metragem de terror, pois nunca lido muito bem com histórias que conseguem atingir tamanha sensibilidade no coração e nas reflexões sobre a nossa realidade, denotando os níveis que a arte pode impactar em nossas experiências imaginativas e pessoais. Ele entra em uma lista muito específica e pessoal de filmes em que preciso me preparar emocionalmente para reassistir em algum momento da vida, porque, em uma segunda viagem, outros detalhes vão saltar aos olhos, novas emoções podem ser reencontradas e desafios para o futuro que podem alterar as nossas zonas de conforto.

É uma experiência alienígena na trajetória de David Lynch, mas ressalta sua versatilidade e talento enquanto diretor, já que não poderia haver algo mais destoante em sua carreira tão marcada por características surrealistas e narrativas não convencionais. Acaba sendo uma excelente recomendação coringa para aqueles que nunca imaginariam testemunhar outras obras do diretor, é o mais “pé-no-chão” de todos os seus filmes e um dos trabalhos mais sensíveis que testemunhei no quesito atuação. Mesmo com todas as diferenças de elenco, ainda temos dois rostos familiares na parceria de Lynch, que são as rápidas presença de Harry Dean Stanton e Everett McGill. E claro que não poderiam faltar suas referências ao Mágico de Oz, havendo uma personagem cujo nome é Dorothy, fazendo o bingo de referências continuar consistente em sua carreira criativa! Seu único concorrente continua sendo sua obra máxima que é o universo de Twin Peaks. Trabalho autêntico, emocionante e marcante na memória…


Filme: The Straight Story (Uma História Real)
Elenco: Richard Farnsworth, Sissy Spacek, Jane Galloway Heitz, Everett McGill, Harry Dean Stanton
Direção: David Lynch
Roteiro: John Roach, Mary Sweeney
Produção: Estados Unidos
Ano: 1999
Gênero: Drama, Roadmovie
Sinopse: Idoso, ao saber que o irmão com quem brigou e que não vê há anos está doente, resolve ir visitá-lo e fazer as pazes. Como não tem carteira de habilitação, viaja quase 500 quilômetros dirigindo um cortador de grama.
Classificação: Livre
Distribuidor: Walt Disney
Streaming: Não disponível
Nota: 9,0

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