No cenário do cinema contemporâneo, sinto que o status de “símbolo”, aquele indivíduo que em sua maneira de existir e se expressar cria ou preenche uma definição, Clint Eastwood é um dos últimos sobreviventes de uma velha guarda que designou o conceito de “masculinidade” na cultura popular, por bem ou por mau dependendo quem é questionado. Com o início da notoriedade da sua carreira interpretando o protagonista não-nomeado que dispensa justiça com suas próprias mãos na Trilogia dos Dólares (1964-1966) de Sergio Leone, ao auge de sua presença na tela como o detetive brutal, mas eficiente Harry Callahan em “Dirty Harry”(1971), Eastwood sempre se portou na vida real da mesma maneira que seus personagens, obviamente não em suas ações, mas sim em como ele projeta sua imagem ao mundo.
No início dos anos 90, Eastwood já possuía uma carreira respeitável como diretor, já tendo dirigido diversos westerns e filmes de ação. Ao vasculhar sua filmografia, grande foco sempre é depositado sobre o western revisionista “Os Imperdoáveis” (1993), por motivos óbvios. Porém, alguns anos antes, Eastwood dirigiu um filme cuja falta de atenção que recebe é uma verdadeira injustiça.
“Coração de Caçador” é uma adaptação de um livro publicado em 1953 por Peter Viertel, autor e roteirista. Viertel ficcionaliza sua experiência como roteirista no filme “Uma Aventura na África”(1951) dirigido por John Huston. O protagonista Pete Verrill (Jeff Fahey), baseado em Viertel, um roteirista em ascensão em sua carreira é convocado pelo diretor John Wilson (Clint Eastwood), baseado em John Huston, para escrever o roteiro de seu novo filme que será filmado em locação na África.
Ao interpretar Wilson, Eastwood deixa óbvio a inspiração do personagem em seus maneirismos, especialmente na maneira em que ele alonga certas vogais, basicamente uma marca registrada de Huston. O crítico Roger Ebert descreveu que em umas das vezes que ele conversou com Huston pessoalmente, ele percebeu como que ele mantinha o contato visual constantemente e se aproximava de um modo quase que excessivo, quase que uma maneira de gritar “Eu estou prestando atenção ao que você está dizendo, acredite” através apenas de linguagem corporal.
Com o desenrolar do filme, o personagem de Wilson é mais exposto. Ele se apresenta como um homem rústico em sua masculinidade, um Ernest Hemingway do cinema, com um grande ódio por ignorância, como é demonstrado nas diversas cenas em que ele entra em conflito com racistas e antissemitas. Logo fica claro que Wilson possui uma obsessão, caçar um grande elefante branco, e ele é o tipo que permite que suas obsessões interfiram com tudo e todos ao seu redor. Verrill acompanha Wilson relutantemente em suas caçadas, e para ele a ideia de matar um elefante, um animal que ele considera como majestoso, está ao nível de um pecado capital, algo que Wilson considera como sendo uma motivação extra.
Jack N. Green é responsável pela direção de fotografia, continuando sua colaboração com Eastwood que culminaria em seu próximo filme, “Os Imperdoáveis”. Ele captura as savanas e rios do Zimbabwe lindamente e sem muitas invenções. No roteiro, um trio de veteranos, além de Peter Viertel, Burt Kennedy e em seu último trabalho, James Bridges. Jeff Fahey, provavelmente mais conhecido pelo grande público por sua participação na série “Lost”, é efetivo em interpretar um homem em um conflito entre sua ética e sua amizade. Marisa Berenson, conhecida por sua atuação em “Barry Lyndon”(1975) como Lady Lyndon, interpreta Kay Gibson, a versão ficcionalizada de Katherine Hepburn.
Eastwood provavelmente nunca teve um personagem tão interessante quanto John Wilson/John Huston, e considerando o paralelo das imagens de masculinidade que tanto Eastwood quanto Huston cultivaram ao longo de suas vidas, o filme acaba adotando uma camada de meta contextualidade, uma característica de certa raridade no cinema americano após os anos 70, e mais notável ainda quando consideramos a maior convencionalidade nas escolhas diretoriais de Eastwood. “Coração de Caçador” merece maior destaque na filmografia de Clint Eastwood, não só apenas por seus méritos estéticos, mas também em como que ele funciona como uma interrogação da autoimagem de seu realizador usando outro artista como base.
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Filme: White Hunter Black Heart (Coração de Caçador) Elenco: Clint Eastwood, Jeff Fahey, Marisa Berenson, Timothy Spall, George Dzundza Direção: Clint Eastwood Roteiro: Peter Viertel, James Bridges, Burt Kennedy Produção: Estados Unidos Ano: 1990 Gênero: Drama Sinopse: Um diretor de cinema fica obcecado em caçar um elefante branco em meio da filmagem de seu novo filme. Classificação: 12 anos Distribuidor: Warner Bros. Streaming: HBO Max Nota: 8,0 |