A pontualidade de cada singelo momento que vem a rasgar o interior, sem nenhum grito, nada espalhafatoso. “Socorro… Socorro… Socorro” sussurra o fantasma, em busca de uma companhia, de uma verdadeira conexão. Kurosawa trata ali em 2001 de um mal que acomete os pensamentos filosóficos desde tempos antigos: como a espécie humana lida com a inerência de ser solitário? Agrega um fenômeno da sua época que tomou rumos mais complexos ainda, a Internet. A conexão virtual. A promoção de uma vida online que lhe permite estar a um toque ou clique de uma rede de informações infinita.
2021, ou melhor, 2020 parte dois, nos levou a sérios problemas em termos macrossociais e microssociais. A quem ainda respeitava as regras de isolamento e se mantinha só nas saídas para o básico, acabava aterrorizado pelos impactos das notícias, eventos e o negacionismo da sociedade globalizada. Os olhos vidrados, exaustos e inchados do tanto encarar os milhares de pixels, objetiva uma rotina, “normalidade” que está longe de ser controlada, dissolvendo-se junto da máquina enquanto indivíduo. Onde se separa máquina do ser pensante? O celular é uma extensão dos dedos, das mãos, do próprio ato de pensar. Ah! Tem ali, escondida em panos de ignorância a paranoia. Penetra e carcome pelas bordas, nos horrorizando com as incongruências da sociedade, das insanidades que saltam aos montes, do temor de ser infectado e se perder na roleta russa da doença. Ter saído vivo de 2021 não foi um dos momentos mais fáceis, na verdade, o momento mais delicado, recheado de pressões para essa geração de dias passados dourados.
A experiência de rever essa obra de terror nas atuais circunstâncias gerou uma infinidade de inferências as situações pessoais quanto de relatos de outros próximos. Ver essa virtualização forçada que adoece é delicado, a temeridade é uma neblina, pairando no horizonte, sem poder se entender a extensão dos impactos dessa, talvez, condição temporária. Desde os primeiros momentos vem-se a noção de solidão, marcado pela melancolia fantasmagórica tão bem expressada pela imagem/som. Os rostos e formas humanas ao fundo dos personagens sempre borrados, cobertos pelas sombras, sussurrando uma dissolução da própria identidade enquanto personas que convivem em sociedade. Você questiona até em que momento as figuras principais da trama serão absorvidas por aquele ar depressivo e agoniante. Daí a importância de quem sabe tentar dar os mais variados espectros que a solidão pode nos acarretar. Uma pitada de hipóteses das várias interpretações que o subtexto do filme deixa-nos para devorar.
A prioridade é estabelecer primeiro a pilastra central que é rodeada das manifestações solitárias. As pessoas anseiam por conexão, contato, intimidade, amores e companheirismo. Não há um sequer ser pensante que perambula pelo mundo que não tenha essa necessidade de companhia. No mundo supersticioso das religiões, sempre há uma resposta para essa solidão, com as mais ambíguas e diferentes interpretações. Seguindo pela mais convencional e clichê: após a morte, no mundo pós vida haverá uma reunião com todos os outros que já partiram.
No filme, as manifestações sobrenaturais vazam dessa dimensão para a realidade concreta, por conta que do lado de lá está lotado, sem espaço para as tantas almas que chegam ano após ano. O que elas então demonstram ao surgir no nosso mundo? O rosto da perpetuidade afogada em solitude. Do outro lado nada muda, então os vivos que afaguem essa carência, abracem este ser ululante retorcido pelos ermos do coração. Quem vive, ou pelo menos, está fisicamente na concretude, ao encarar uma figura carregada com essa resposta, se vê amaldiçoado. Nem no mundo dos mortos se pode respirar contra o aperto no coração de saber que o ermo sempre estará do seu lado.
Nesse labirinto visando encontrar a luz, os olhos focam nos outros seres humanos que vivem. Já dito antes: não passam de figuras, formas que lembram onde talvez houve um sorriso, um suspiro apaixonado, uma risada descontraída. Não há nada além de silêncio. O computador, vira promessa de ser algo, atrair alguém, mostrar portas antes inacessíveis para a sociedade. Falso, falso e falso. De cada câmera que se defronta, cada imagem das pessoas em seus quartos, isolados, abandonados, desacreditados, desumanizando-se miúdo por miúdo. Os seres humanos caem aos montes aos abismos profundos do Tártaro.
Qual a diferença da ficção e realidade? Existiram dias que tudo era repetido, nada se alterava, somente as notícias que mais e mais se enchafurdavam de obscuridade. Manhã, cafeteira ligada, cigarro aceso, xícara cheia, café tomado. Computador ligado, mais uns dois cigarros, busca por motivação para exercer as tarefas universitárias, cansaço e exaustão. Não, tem que continuar. Outro copo de café. Cigarro. Sair para comprar outro maço. Aquele único ia acabar no fim do dia. Fim de tarde. Filme. Uma hora e meia distraído. Computador. Jogar com os amigos. Risadas e afagos leves. Conferência fechada, jogo finalizado. Cama, paranoia, mais um cigarro, medo de dormir, insônia. Ao fim da madrugada, rumo à exaustão, o corpo descansa torturado de ansiedade. Abre os olhos, mais um dia. Está tão longe daquelas formas que o filme mostra? Não, nenhum pouco. Talvez, em alguns poucos momentos, até atingisse aquele estado onde a consciência fica no limiar da razão e a inconsciência dos olhos apáticos.
O pico do filme é a personagem Harue encarando a própria câmera, num momento que o diretor ousa nos transformar em testemunhas, em personagem. Ela vem com seus passos lentos, comedidos de hesitação, buscando se conectar com o público, com nós do outro lado da tela. Sorri, visando ali encontrar conforto. Acompanha-se os passos trágicos dela, do seu desespero e ansiedade, sabendo que a solidão a aguarda, sem muitas soluções para essas aflições. Mesmo fugindo, pegando o trem, visando a escapada da conformidade, de nada adianta, os vagões também estão completamente vazios. Lembramos de cada segundo e minuto junto dela, e seu olhar gélido e o sorriso para dentro dizem tudo.
Não há esperança. Não há luz. Há quem sabe no fim um completo mistério cósmico. Aqui, a espinha gelou, o arrepio serpenteou pelas costas e abocanhou as pontas dos dedos. Estar jogado num país onde os riscos aumentam a cada dia, as paranoias espreitam pelos cantos do quarto, num negacionismo da realidade, numa fuga para respostas absurdas, nos vemos trancafiados. A cabeça busca respostas, igual Harue: “Há esperança, há felicidade, há alegria” que escorrem pelas mãos. O espírito solitário arrebata como uma onda, acompanhado dos violinos, aqueles seres que apagam, que oscilam, sem muito a mostrar, já não são tão distantes… Harue, vaga pela cidade vazia, acabada, que fica mais e mais borrada, em busca da solução. E ao mundo dos mortos ela vaga após um disparo de arma e um sorriso que mostra que lá dentro nenhuma resposta boa foi encontrada.
A sobrevivente deste apocalipse fantasma, nossa protagonista, encarcera dentro de si um dilema que nos dá um horizonte de resposta para tamanha descrença e desgraça que percorre este mundo afogado em melancolia. Diferente dos outros personagens, ela compõe firmeza em seu coração, enxergamos esse vigor desde a primeira cena que aparece. Se preocupa genuinamente sem desestruturar o próprio ego, sem desanuviar nas suspeitas e denúncias para onde o mundo vai encarando o abismo. O fio para uma resposta positiva aparenta estar por este caminho. Entender nosso limite, entender a individualidade inata e estar bem com isso. Amadurecer a ponto de saber as fronteiras que existem na comunicação e estruturação de uma relação afetuosa com outro indivíduo. É encontrar-se sem o deslumbre niilista. Ver o abismo e saber, mesmo com o mundo do outro lado assombrando com assustadores sussurros, os temores cósmicos filosóficos, a vida continua. Com todas as notícias, os malabarismos argumentativos de um presidente acéfalo, uma provável guerra nuclear. Com tudo isso, ainda nos apoiamos, no que apoiamos já é uma resposta que cada um vem a obter nas aflições.
Nestas nebulosas e perambulantes ideias, um suspiro das raízes que Kairo/Pulse estende dentro do espectador. Agonizante, belo, melancólico, solitário. Termino aqui com uma pergunta: dentre os tantos colapsos durante a pandemia, você caminhou mais para o lado dos fantasmas? Eu… Bom… Talvez por conseguir redigir tais palavras ainda não me vi perdido… No entanto, às vezes no meio da madrugada, com um pouco de esforço, aos cantos e por de trás das portas ouço… “socorro, socorro…… socorro… socorro”.
Filme: Kairo Elenco: Haruhiko Kato; Kumiko Aso; Koyuki; Kenji Mizuhashi Direção: Kiyoshi Kurosawa Roteiro: Kiyoshi Kurosawa Produção: Japão Ano: 2001 Gênero: Horror; Terror; Mistério; Sci-fi Sinopse: Um grupo de jovens amigos é abalado pelo suicídio repentino de um deles. Quando sua imagem fantasmagórica aparece na tela do computador, algo muito mais terrível é desencadeado. O terror aumenta à medida que mais mortes e desaparecimentos ocorrem. Classificação: 16 Distribuidor: Versátil Streaming: YouTube Nota: 10.0 |
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