O mundo do cinema nos prepara muitas surpresas. Quem diria que eu estaria assistindo um filme de produção butanesa (Butão) e que este filme seria capaz de tamanha reflexão e paralelos com o nosso país, Brasil?!
A Felicidade das Pequenas Coisas – filme que está na shortlist da categoria de Melhor Filme Internacional para o Óscar 2022 – narra uma etapa da vida de Ugyen (Sherab Dorji), um jovem professor que deseja ser cantor fora do seu país. Ugyen é um professor completamente desinteressado, mas que faz parte de um programa do governo, obrigatório por um período, que prega que a educação tem de chegar a todos naquele país, pois todas as crianças tem o direito de aprender. E aqui faço o primeiro paralelo inverso com o Brasil. Não é nenhuma novidade que uma das profissões mais desvalorizadas aqui é a do professor e essa desvalorização vem de todos os cantos de nossa sociedade, o que acaba refletindo também em um descompromisso com a própria educação em nosso país. Muitos professores não possuem às condições mínimas para dar aula, mas estão ali, dia após dia, com a missão de educar as novas gerações.
Não precisa procurar muito para vermos relatos de professores que precisam viajar muitos quilômetros diariamente, sobretudo na zona rural. No longa do diretor Pawo Choyning Dorji há também essa barreira da distância e da dificuldade da chegada da educação a todos naquele país. E a mensagem, desde o início, é muito clara. Só a educação é capaz de mudar a vida, verdadeiramente, de uma pessoa.
Ainda que o filme impressione com suas belas paisagens, extraídas dos inúmeros planos aberto, que nos deixam contemplar aquelas belezas naturais e, apresentando, em um total contraponto, as cenas na cidade com seus planos mais fechados, nos fornecendo a ideia de uma limitação de espaço, de visão e de apreciação, considero muito apressada a construção do personagem Ugyen como um jovem revoltado, querendo a todo custo sair do país para começar a viver “livre” em um país de língua inglesa, mas que acaba se satisfazendo com uma vida longe de toda e qualquer ocidentalização, na qual seu único foco está na educação das crianças daquela vila chamada Lunana.
Evidente que o longa quer mostrar essa transformação do personagem. No início do filme Ugyen é arredio, apegado as facilidades de um mundo que não reflete 100% do território de seu país. E nos choca quando percebermos nele, um professor, a total ignorância quanto aos costumes e culturas de seu próprio povo. Além disso há uma certa soberba em seu personagem que demora a se descontruir como na cena em que se nega a cantar uma música junto com Michen (Ugyen Norbu Lhendup), um pastor de Iaque que está o acompanhando na subida até Lunana. Essa cena em especial ainda demonstra de forma bem visual como eles estão em lados opostos sobre o conceito do que é viver. Entretanto quando percebemos, enfim, sua mudança, nos emocionamos verdadeiramente. E esta emoção corre de fora para dentro, pois aquilo que sentimos vai ser sentido pelo personagem quando este perceber, através dos seus alunos, o quanto ele significou na vida de cada um ali.
Dorji constrói a primeira parte da jornada através de informações como população e altitude de cada parada que Ugyen faz até chegar a Lunana e tais números servem para escancarar o que já havia sido dito minutos antes: “Não é apenas a escola mais remota do Butão, mas, provavelmente, do mundo”. O caminho não é fácil, ele é pedregoso e é uma eterna subida. Mas o “chegar lá” vai muito além do chegar em Lunana. Ele, Ugyen, só “chega lá” quando percebe sua missão naquela comunidade que está a 4800 metros do nível do mar e que possui uma população de 56 pessoas.
Em sua primeira aula Ugyen é confrontado por 3 crianças com sonhos que, para sua surpresa, falam mais dele do que delas: Um diz que quer ser professor, outro cantar e outro quer servir ao governo. Por mais distante que pudesse estar do que ele conhece como civilização, ainda assim, ali existiam crianças que almejavam um futuro para além de pastores de Iaques e coletores de fungos. Esse choque com uma realidade inesperada e com a diferença entre o que achava que iria encontrar, em todos os sentidos, e o comportamento daquelas crianças e da comunidade de um modo geral, o faz repensar a sua missão. Mas é aqui que o filme não se decide sobre como quer terminar. Ele titubeia nos minutos finais entre uma completa entrega a um desejo mais intimo e um desejo do velho Ugyen.
O romance entre Ugyen e Saldon (Kelden Lhamo Gurung), muito embora funcione como um elemento a mais para sua proximidade com a comunidade e para com o conflito da sua decisão final, tem um desenvolvimento cadenciado que não se decide entre dar o próximo passo em direção à uma entrega maior àquele sentimento ou se, simplesmente, o que existe ali é, apenas, uma amizade. Mas, surpreendentemente, começamos a nos afeiçoar por aquela relação entre eles dois e, felizmente, a condução desse sentimento não ultrapassa os limites do que está sendo apresentado naquela trama. Afinal não é aquele romance que importa e sim o sentimento de pertencimento do personagem Ugyen para com seu país e para com aquelas crianças. E é aqui que martela uma frase do filme sobre Asha (Kunzang Wangdi), o chefe da aldeia.
“Ele sempre disse que só voltaria a cantar quando o Iaque dele voltasse para casa”.
E tudo faz ainda mais sentido quando o titulo original da obra Lunana: Um Iaque na sala de aula não fala sobre Norbu, um iaque que Ugyen ganhou de Saldon e que fica dentro da sala de aula para se proteger do frio, mas sim do próprio Ugyen. Em um dialogo entre Asha e Ugyen, este último considera que em uma outra vida pode ter sido um pastor de iaque, tamanha a afinidade que se consolidou entre ele, Lunana, as crianças e todas as 56 pessoas daquela região. Mas de uma forma singular e sentimental, Asha discorda falando que ele, Ugyen, na verdade, foi um Iaque na vida passada, justamente, pela importância que ele possui agora para todas aquelas pessoas de Lunana.
Ainda que o desfecho do longa seja satisfatório, principalmente, com a ideia de deixar para o público a reflexão do que acontece após a subida dos créditos, não é tão estimulante saber que, de alguma forma, aquele ciclo pode ter tido um fim.
A felicidade das pequenas coisas trata sobre enxergarmos o lado bom de tudo, em como diante de adversidades conseguimos, com muita criatividade, tirar o máximo de nós e, sobre darmos valor ao que realmente importa, nossa família, saúde e as crianças que sempre sofrem a pressão de serem o futuro de qualquer nação.
Filme: Lunana: A Yak in the Classroom (A Felicidade das Pequenas Coisas) Elenco: Sherab Dorji, Ugyen Norbu Lhendup, Kelden Lhamo Gurung, Pem Zam, Sangay Lham, Chimi Dem, Kunzang Wangdi, Tsheri Zom Direção: Pawo Choyning Dorji Roteiro: Pawo Choyning Dorji Produção: Butão, China Ano: 2019 Gênero: Drama Sinopse: O professor Ugyen Dorji sonha em se mudar para a Austrália e ser um cantor famoso. Em seu último ano de contrato com o governo, ele é mandado para Lunana, onde deve assumir uma escola infantil. Classificação: 10 anos Distribuidor: Pandora Filmes Streaming: Não disponível Nota: 7,9 *Estreia dia 27 de janeiro de 2022 nos cinemas* |
A Felicidade das…
é um filme que nos tranquiliza pois ficamos mais esperançosos.