A HERANÇA DE MATRIX

A HERANÇA DE MATRIX

Em 1999 o pequeno Gabriel tinha completado apenas 9 anos. Uma criança que estava mais preocupada em tentar terminar Super Mario Bros antes que o prazo da locadora acabasse do que qualquer outra coisa, e que tinha acesso a filmes apenas pela saudosa companhia da sessão da tarde. Na minha escola, a molecadinha não tinha o hábito de conversar sobre o que hoje é conhecido como cultura pop, a não ser quando acontecia uma ou outra promoção da Coca-cola e da Elma Chips lançando um Bonequinho ou um Tazo dentro de seus produtos (Sim, é bonequinho! Não me venha com Action Figure para cima de mim não), então era complicado ficar inteirado sobre o que estava acontecendo, principalmente no que se referia a cinema. Um dia – não tenho a menor ideia de como ou porque isso estava acontecendo – o centro da cidade começou a ser frequentado por jovens-adultos que estavam andando com sobretudo preto e óculos escuros no calor obsceno de Ribeirão Preto. Simplesmente do nada. Claro, o fenômeno não foi apenas percebido por mim, mas por toda uma classe de crianças que estavam extremamente curiosas e animadas com o fato. Era style, como falariam os VJs da MTV daquela época.  Pouco a pouco fomos descobrindo que tinha um filme em cartaz, super legal, onde os “heróis” se vestiam daquela maneira. Nada de cueca por cima da calça e capa. Não. Apenas roupa estilosa e, de certa forma, acessivelmente comum. Nem preciso concluir que o efeito imediato foi salas de cinema lotadas de crianças para poder ver aquilo de perto. Não foi meu caso. Não tive a oportunidade de ver Matrix nas telonas, o que com certeza teria sido uma experiência incrível. Mas a moda perdurou por tempo suficiente para me manter interessado até a chegada do filme na TV.  Quando assisti, lembro de ter achado incrível. As expectativas foram completamente satisfeitas. Se tratava realmente de super heróis com roupas modernas e que sabiam lutar de um jeito muito massa e ainda desviavam das balas. Era impossível não gostar daquilo, apesar da história ser bem confusa e do vilão falar coisas bem complicadas. Mas, ainda assim, era bem bom.

talvez nem tão estiloso assim

Passou um tempo e a internet chegou nas minhas mãos. Junto com ela, veio coisas bastantes divertidas como Bate papo da Uol, vídeos em qualidade duvidosa do Mundo canibal e sites conspiracionistas. Esses últimos, sempre com bastante audiência, falavam milhares de coisas que variavam entre ufologia e algo que parecia um pouco com filosofia da mente.  E aí, para essa galera, Matrix foi um prato cheio. O conceito de “sair da Matrix”, de perceber que éramos dominados por um sistema que tinha como única função alienar para governar, era sedutor demais para cabeças adolescentes e gente com o parafuso meio bambo. Claro, isso tudo criou uma aura muito charmosa para o filme, dando uma camada que não existia na primeira e única vez que havia visto o filme. Foi nesse momento que veio o fascínio pela história toda, o verdadeiro mindblowing que provavelmente acometeu os adultos quando viram Neo arrebentar agentes Smiths na tela do cinema. Foi nesse momento que a minha conta na locadora perto de casa ficou recheada de dívidas. Não tinha como absorver tudo aquilo que as pessoas estavam escrevendo assistindo apenas uma vez. E era divertido tentar prestar atenção e tentar extrair coisas que alguém ainda não tinha visto. Obtive sucesso nessa empreitada, pergunta o curioso e engajado leitor… Evidente que não. Mas o entretenimento estava ali de qualquer forma, então ponto para o time dos conspiracionistas.

20 anos depois, já adulto e com uma carga maior de experiências, no meio de uma graduação de psicologia, resolvi revisitar não só o filme, mas toda a obra – que conta com a franquia cinematográfica, 9 curtas animados e jogos de videogame. Parte da minha motivação é a de ver como o filme enquanto obra envelheceu. Se todos aqueles conceitos propostos ainda são válidos ou foram engolidos pelo tempo. Outra parte reside no fato de que Matrix influenciou parte importante da cultura popular, principalmente no que hoje se chama de “filosofia redpill” em clara referência às pílulas que Neo deve escolher durante sua jornada. E, claro, usar da minha experiência na psicologia para tentar dar um sentido mais maduro às minhas interpretações e, porque não, comparar com o que se tinha quando a internet era apenas mato, cheia de sites que usavam o filme em suas teorias conspiratórias.

WELCOME TO THE MATRIX, NEO

O plot do filme é relativamente simples, sem muitas complicações se comparado às pretensões filosóficas que ele tenta abranger. Sou obrigado aqui avisar que desse ponto em diante há spoilers que podem atrapalhar sua experiência caso ainda não tenha visto o filme – e acreditem, amigos, chegamos na era em que existem adultos entre 18 e 23 anos que ainda não viram esse clássico e nem sabem do que se trata. A idade chega para todos…

Thomas A. Anderson é um programador que se diverte nas horas vagas sendo hacker, usando como codinome para suas empreitadas virtuais, Neo. Sempre com uma pulguinha atrás de sua orelha, se pergunta como as coisas andam, e se deveriam andar como estavam andando. E daí, nasce a pergunta chave de sua busca: O que é a Matrix? Para tanto, se dedica a procurar uma figura famosa no submundo virtual, Morpheus. Mas, pego de surpresa pelas artimanhas da vida, Neo é quem é achado e introduzido dentro do contexto que se buscava. Tudo isso com direito a “perseguições governamentais”, interrogatórios sinistros e implantes de dispositivos de rastreamento em seu corpo. Claro, Morpheus e sua patota salvam Neo e oferecem a ele duas oportunidades: a resposta que tanto buscava em sua vidinha de cidadão médio ou a possibilidade de acordar em casa e esquecer tudo aquilo que havia acontecido. Para tal, ele deveria escolher entre duas pílulas, vermelha e azul, representando respectivamente as suas alternativas. Pelo bem da narrativa, ele escolhe a vermelha e embarca na “divertida” aventura que é a resposta de sua eterna pergunta.

Como diria um velho ditado “A alienação é uma benção”. Neo descobre através de Morpheus e seus coleguinhas que Matrix nada mais é do que uma realidade simulada para que os humanos sirvam de energia vital para a vida e manutenção de máquinas inteligentes.  Algum mega-empresário cheio de grana e sem escrúpulos provavelmente financiou pesquisas em I.A e, claro como todo mundo já sabe, deu merda e as máquinas venceram. Quando tudo parece ser desgraça para o pobre Neo, Morpheus ainda o presenteia com a informação de que se tem uma profecia que, um dia, O ESCOLHIDO chegaria e salvaria tudo e todos das mãos dos robôs malvados. E quem seria o Jesus Cristo do apocalipse das máquinas? Neo! Daí em diante a porradaria come solta com direito a profecias, elementos de programação de software, filosofia da mente e efeitos especiais.

OS NERDOLAS FICARAM MALUCOS

Com apenas cinco minutos de pesquisa conseguimos achar uma definição bem boa de Filosofia da mente. Segundo o nosso amigo Google, Filosofia da mente é o estudo filosófico dos fenômenos psicológicos, incluindo investigações sobre a natureza da mente e dos estados mentais em geral. A filosofia da mente envolve estudos metafísicos sobre o modo de ser da mente, sobre a natureza dos estados mentais e sobre a consciência. Não precisa ser muito gênio para perceber que Matrix tenta abordar o tema em uma época em que a cultura pop dificilmente se prestava a esse papel. E muito por conta disso, acabou alimentando uma série de movimentos que ainda engatinhavam dentro da pouca explorada internet. Em fóruns obscuros, uma galera começou a ganhar voz. Ditos excluídos, começou-se a ideia romantizada do Outsider como um oprimido pela padronização de ideias e pensamentos. Como consequência direta, a expressão “saia da matrix” virou referencia para empreendedores de palco (pensar fora da caixa), conspiracionistas sociais (desperte sua mente), e adolescentes necessitados por abraçar alguma causa com certo sentido. Nada muito grave se a coisa toda não evoluísse para um discurso misógino, racista e totalmente elitista. Alguns desses grupos começaram a se denominar “redpills”, que basicamente são homens conservadores que adotam posturas de extrema direita e espalham Fake news e discurso de ódio em grupos fechados de WhatsApp

SAIA DA CAVERNA E VIVA A IRONIA

Talvez a maior alusão filosófica que Matrix faça dentro de sua história seja a referência ao mito da caverna, de Platão. Nele, o filosofo grego expõe, através de uma alegoria, como o ser humano pode se libertar da condição de escuridão, que o aprisiona, por meio da luz da verdade, em que o filósofo discute sobre teoria do conhecimento, linguagem, educação e sobre um estado hipotético. Segue a história, segundo um artigo da Wikipédia.

“Pessoas acorrentadas, sem se poderem mover, forçados a olhar somente a parede do fundo da caverna, sem poder ver uns aos outros ou a si próprios. Atrás dos prisioneiros há uma fogueira, separada deles por uma parede baixa, por detrás da qual passam pessoas carregando objetos que representam “homens e outras coisas viventes”. As pessoas caminham por detrás da parede de modo que os seus corpos não projetam sombras, mas sim os objetos que carregam. Os prisioneiros não podem ver o que se passa atrás deles e veem apenas as sombras que são projetadas na parede em frente a eles. Pelas paredes da caverna também ecoam os sons que vêm de fora, de modo que os prisioneiros, associando-os, com certa razão, às sombras, pensam ser eles as falas das mesmas. Desse modo, os prisioneiros julgam que essas sombras sejam a realidade

Imagine que um dos prisioneiros seja libertado e forçado a olhar o fogo e os objetos que faziam as sombras (uma nova realidade, um conhecimento novo). A luz iria ferir os seus olhos e ele não poderia ver bem. Se lhe disserem que o presente era real e que as imagens que anteriormente via não o eram, ele não acreditaria. Na sua confusão, o prisioneiro tentaria voltar para a caverna, para aquilo a que estava acostumado e podia ver.

Caso ele decida voltar à caverna para revelar aos seus antigos companheiros a situação extremamente enganosa em que se encontram, os seus olhos, agora acostumados à luz, ficariam cegos devido à escuridão, assim como tinham ficado cegos com a luz. Os outros prisioneiros, ao ver isto, concluiriam que sair da caverna tinha causado graves danos ao companheiro e, por isso, não deveriam sair dali nunca. Se o pudessem fazer, matariam quem tentasse tirá-los da caverna”

Ora, Platão fala sobre sair das amarras da escuridão. Uma metáfora sobre como o conhecimento está a serviço de uma liberdade emancipatória, capaz de livrar os seres da ignorância que parece ser natural dos humanos. O raciocínio lógico nos leva a compreender, então, que o caminho do conhecimento seria a chave fundamental para o entendimento da vida. Se levarmos em conta esses conceitos e usa-los como justificativa para as manifestações machistas e misóginas dentro de fóruns e grupos de whatsapp e telegram, percebemos a ironia. Chega a ser absurdo e surreal. Como uma teoria sobre liberdade pode fundamentar movimentos conservadores que, via de regra, pregam o contrário? E mais, usam de um filme escrito e dirigido por um par de irmãs que se entendem como mulheres trans, o que vai na contramão do pensamento do “redpill”. Aparentemente, para eles, sair da caverna é de fato uma alegoria. É sair de uma para entrar na outra. É continuar estacionado em uma adolescência repleta de heróis (homens) lutando contra seus vilões. Chega a ser bobo.

Matrix não envelheceu mal. Como filme ainda funciona muito bem e suas reflexões ainda são e serão muito relevantes. Uma pena que acabou servindo de base para ideias que vão ganhando cada vez mais espaço no mundo. Não era a intenção. O que nos resta é tentar, a todo momento, ressignificar – e explicar –  para as gerações atuais e próximas que, de fato, o conhecimento é a fonte principal para a liberdade.

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