O mito de Sisi
Que a imperatriz Elisabeth da Bavaria é fonte de fascínio desde sua época não é segredo. E, graças às inúmeras produções audiovisuais nos últimos 120 anos, esse fascínio perdura até hoje. Romy Schneider é provavelmente a interpretação mais conhecida de Elisabeth, às vezes também chamada de Sisi, em uma série de filmes dos anos 50. Mais recentemente, em 2021, foi lançada a série “Sisi”, uma coprodução Alemanha-Austria sobre a vida da imperatriz. E agora, em 2022, a Netflix lançou “A Imperatriz” (Die Kaiserin).
Criada por Katharina Eyssen, a série tem uma proposta um tanto diferente de algumas produções anteriores. É muito comum que as produções sobre Sisi sigam um mesmo caminho: a romantização da vida da imperatriz. O mito criado em torno de Sisi era tanto que as produções capitalizaram nessa imagem da heroína romântica.
No entanto, a vida de Elisabeth esteve longe disso: se sentia presa pelos costumes dos Habsburgos, em uma vida rígida muito diferente da liberdade que tinha em seu país natal. Não se entendia com sua sogra, e sofreu perdas traumáticas de vários de seus filhos. Uma dessas perdas, inclusive, foi tópico também de diversas produções e até de um dos ballets mais famosos de Kenneth MacMillan, Mayerling.
Romantizações aqui, verdades ali
Com esse contexto, o que a produção da Netflix traz de diferente é justamente não romantizar a vida de Elisabeth na corte austríaca. Desde o começo, a série faz questão de mostrar que aquele era um lugar determinado a conter o espírito livre de Elisabeth. Como espectadora, era possível sentir o quão sufocada ela se sentia pelas pessoas e costumes, e o quão infeliz e inadequada ela se sentia.
No entanto, a fidelidade histórica meio que acaba por aí. A série segue livremente os acontecimentos do primeiro ano do casamento entre Elisabeth e Franz Joseph, com muitas histórias sendo completamente inventadas, como a paixão do irmão de Franz Joseph, Maximilian, por Sisi e a tentativa de golpe de estado deste. O amor entre Elisabeth e o imperador fica no limbo entre verdade e ficção – enquanto a série mostra que eles eram ambos muito apaixonados um pelo outro, o que é um exagero da realidade, também mostram o distanciamento que começa a ocorrer entre o casal com o passar dos meses em Viena. Neste quesito, só uma segunda temporada poderá esclarecer qual caminho a criadora optou por seguir.
Invenções são interpretações
No entanto, essa falta de fidelidade histórica não é necessariamente ruim. “The Great”, premiada série sobre a vida da imperatriz Catarina da Rússia, desde o começo avisa que só às vezes os acontecimentos são reais, e a série funciona muito bem nesse autodeclarado limbo histórico. Nem “The Great”, nem “A Imperatriz”, se vendem como documentários sobre a vida das pessoas que retratam. Pessoalmente, a falta de fidelidade histórica não me incomodou. Talvez por já conhecer toda a história real, talvez pela série ser muito bem feita, mas funcionou.
Essa invenção de fatos incomodou muita gente, mas, na minha perspectiva ela funciona para mostrar a perspectiva artística de quem está contando a história. O quase-romance entre Elisabeth e Maximilian, por exemplo, serve para mostrar o quão inadequada Sisi se sentia com a rigidez de ser casada com Franz Joseph, o imperador. Maximilian, como segundo irmão, tem muito menos responsabilidades e deveres, e representa a vida livre que Elisabeth poderia ter vivido, e com a qual ela tanto sonhava.
A vida de Elisabeth não foi romantizada na série, mas ela em si foi. Ela aqui foi representada quase como uma Princesa Diana, a princesa do povo. Encontrei poucas evidências de que isso tenha sido tão forte como apresentado. No entanto, também aqui é um caminho para interpretar a vida de Sisi: a escolha de colocá-la como uma princesa do povo não é gratuita. É uma forma de diferenciá-la da rigidez e distância que os Habsburgos em Viena tinham em relação ao povo.
Por fim, como alguém que é apaixonada por costura histórica, preciso fazer uma breve menção à fidelidade dos figurinos. As roupas de Elisabeth por vezes destoam do ar do século 19, e estariam muito melhor ambientadas em 2022. No entanto, percebe-se que essa modernização das roupas de Sisi é deliberada por parte da figurinista Gabrielle Reumer. A sogra de Elisabeth, por exemplo, quase sempre está com figurinos apropriados à época. Elisabeth também, quando tem que ser vestida de acordo com os gostos da sogra. Aqui o figurino ajuda a contar a história de peixe fora d´água. Eu tendo a me incomodar muito com figurinos que são modernizados sem servir um propósito, mas aqui a intenção fica muito clara. Para quem se interessar pelo assunto, o Museu de História da Arte de Viena produziu um vídeo sobre as roupas reais de Elisabeth.
Acho importante diferenciarmos quando a falta de fidelidade histórica é feita de forma deliberada, como em “A Imperatriz” ou em “The Great”, de quando ela é resultado de uma falta de pesquisa por parte dos criadores ou até deliberada, mas sem propósito. Geralmente é possível perceber a diferença, pois os desvios históricos não parecem servir muito propósito. Felizmente, em “A Imperatriz”, na qual metade é verdade e metade é ficção, tudo é meticulosamente pensado.
Produção impecável
Achei muito interessante que o trio principal da série é composto por atores pouco desconhecidos. Devrim Lingnau, atriz turco-alemã, entrega uma Elisabeth com esplendor, desde a Elisabeth livre e espontânea até a Elisabeth oprimida pela alta sociedade austríaca. Philip Froissant é Franz Joseph, com todas as nuances emocionais e grandiosidade que o personagem pede. Froissant entrega o amor e a dor que é ser quem é e ser casado com Sisi. E Johannes Nussbaum é o Arqueduque Maximilian. Nussbaum em particular conseguiu se destacar em meio a um já excelente elenco. Maximilian aqui é um personagem que precisa de leveza e carisma com um fundo de tragédia que ele conseguiu entregar muito bem. A química dele com Lingnau é surpreendente, e por horas me peguei quase torcendo para que eles fugissem juntos.
O elenco também traz rostos conhecidos, como Jördis Triebel, que foi Katharina Nielsen na série “Dark”, e Melika Foroutan, que foi Varvara em “Tribes of Europa”.
O trabalho de direção de fotografia de Christopher Aoun e Christian Almesberger é particularmente notável dentro de uma produção já excelente. O uso de câmera, cores e ângulos fugiu muito do lugar comum, especialmente para uma produção de época. Por vezes me peguei positivamente surpreendida pelas escolhas, o que só contribuiu para deixar a série dinâmica e interessante.
Por fim, uma coisa inovadora que a série trouxe para a história de Elisabeth foi dar espaço para as turbulências políticas e sociais da época. Ou seja, a história de Sisi não se passa em uma bolha no palácio real, e toca no contexto da época. Espero muito que dêem continuidade a isso na série, acaba enriquecendo muito o produto final. Afinal, o que aconteceu dentro do palácio não é independente do tumulto que ocorria dos portões para fora.
Acho que já ficou claro que a série para mim funcionou muito. Entregou uma história de época dinâmica, bem produzida, bem atuada, com cenários, figurinos e cinematografia lindos. Ela atualiza a história de Elisabeth ao mesmo tempo em que mantém a estrutura geral do que foi a época para ela e para a Áustria.
Série: A Imperatriz (Die Kaiserin) Elenco: Devrim Lingnau, Phillip Froissant, Johannes Nussbaum, Jördis Triebel, Melika Foroutan Direção: Florian Cossen, Katrin Gebbe Roteiro: Katharina Eyssen, Bernd Lange, Janna Maria Nandzik, Lena Stahl Produção: Alemanha Ano: 2022 Gênero: Drama, Obra de época Sinopse: Elisabeth se apaixonou pelo Imperador Francisco, mas não poderia imaginar que ao se casar com ele acabaria mergulhando no mundo de tensões e intrigas da corte de Viena (do site da Netflix) Classificação: 16 anos Distribuidor: Netflix Streaming: Netflix Nota: 8,5 |