A MULHER REI

A MULHER REI

Filmes como A Mulher Rei nos fazem pensar em como esperamos inertes tanto tempo por histórias como esta. A diretora Gina Prince-Bythewood junto com Jordan Peele (Corra!) demonstram muita coragem em romper com as barreiras do preconceito e bater de frente com a indústria do cinema, mais precisamente Hollywood, ao ter o posicionamento firme de fazer filmes em que o elenco é quase todo composto por artistas negros e ter na equipe profissionais negros também. Pode parecer nada demais e, realmente, em um mundo ideal nem precisaríamos discutir sobre isso, mas ao pensar que o filme A Mulher Rei foi rejeitado por diversas produtoras, é louvável a insistência que Viola Davis, a protagonista do filme, e Bythewood tiveram para que agora, em 2022, pudéssemos saborear essa grande aula de história e grande exemplo de exercício da representatividade nos cinemas.

A Mulher Rei se passa na África no início do século 19, um período marcado pelo tráfico de escravos e pela progressão do imperialismo europeu. Bythewood não perde tempo e já começa a caracterizar o filme com as batidas de tambor nos levando a imersão juntando as imagens com o som. O longa é sobre as “Agojie” (“Ahosi” ou “Mino”), guerreiras do exército de Daomé e fonte de inspiração para as “Dora Milaje” do filme Pantera Negra.

Muito embora o reino de Daomé possuísse um exército de homens, estes ficam em total segundo plano e só entram em cena, fisicamente ou apenas citados, quando a diretora quer demonstrar os privilégios, a misoginia, a igualdade de forças e, por vezes, aqui, até uma superioridade em técnicas e táticas de guerra, além de uma maturidade cívico-militar por parte das Agojie, representadas, na maioria das vezes, por Nanisca (Viola Davis).

Falar de Viola Davis é chover no molhado. O que ela faz por sua personagem é incrível. Entrega muita personalidade e muita robustez para aquela que é a comandante das Agojie. Mas claro que não está sozinha. Destaco aqui outras três personagens que agregam muito para a trama, seja na fisicalidade que é necessária para um filme como esse, seja para a inserção do drama factível e verossímil para aqueles tempos difíceis demonstrados em tela, sobretudo para as mulheres negras, vistas sempre do ponto de vista sexual por parte dos estrangeiros que as compravam para este fim. Isso sem falar com a cultura do estupro, que se estabelecia quase como um ponto em comum com todas as mulheres africanas naquela época. Nawi (Thuso Mbedu) tem uma fisicalidade mais jovial, muito altiva e funciona muito bem através de sua história e seus conflitos. Amenza (Sheila Atim) traz todo lado da crença e do misticismo, apresentando um pouco do que conhecemos aqui com religiões de matriz africana (Candomblé e Umbanda). Por último temos Izogie (Lashana Lynch), ela tem o poder de sintetizar tudo o que o filme vai nos apresentando. Ela traz o humor silencioso através de expressões e o uso de poucas palavras com Nawi, ela é quem esteticamente representa a força daquelas guerreiras, mas também é uma personagem que não está livre de um passado violento que deixou marcas profundas em sua vida.

O roteiro, escrito por Dana Stevens e Maria Bello, é perspicaz ao fazer voos sobre vários argumentos como a misoginia, a cultura do estupro que aqui é afunilado para a figura do novo general de Oyó, Oba Ade (Jimmy Odukoya), a colonização europeia, o tráfico de escravos e até mesmo o preconceito de mulheres negras para com outras mulheres negras como fica evidenciado no clima entre uma das esposas do Rei de Daomé, Shante (Jayme Lawson) e a guerreira Nanisca – que possui um certo grau de afinidade com o Rei. Mas mesmo quando estamos nessa seara, percebemos um tom mais ameno, já que aqui vale aquela máxima de que “o inimigo agora é outro”. Se esse conflito entre eles é mais abafado, o mesmo não acontece quando o roteiro começa a discutir sobre a venda de escravos para os europeus, o que configura a venda do próprio povo, se entrarmos em um pensamento de unificação, tão bem dito por Nanisca em muitas das suas falas afiadas mas ditas de forma sutil para seu Rei Ghezo (John Boyega). Há, aqui, uma preocupação em refletir os atos e em como isso contribuía não para com o seu povo, mas para uma perpetuação do negro como mercadoria.

As cenas de lutas, tão bem ensaiadas e captadas, nos jogam para lá e para cá, acompanhando cada guerreira e suas técnicas. Novamente volto a frisar toda a desenvoltura de Izogie. Ela é praticamente o coração do filme. Pulsante e forte. Além de entregar muito para as cenas de ação, é com ela que Nawi também tem grandes momentos. Seja no aprendizado do que precisa para se tornar uma Agojie ou até mesmo pela irmandade que nasce entre elas, um carinho de irmã mais nova pela irmã mais velha.

A câmera, como citei, passa muita clareza nos movimentos e nos focos que a diretora pretende. Tão comum em filmes como esse, a sexualidade das mulheres, aqui, é preservada seja pela ausência de cenas intimas como também pela uso da câmera alta e em close, não explorando, assim, a nudez feminina. Algo que pode parecer bobagem mas que faz total diferença e que só está lá por conta de se ter uma mulher na direção, obviamente.

Evidente que um ou outro deslize existe aqui. Posso citar a inserção de dois personagens: Santo (Hero Fiennes Tiffin) e Malik (Jordan Bolger) que obviamente estão ali para representar a mão opressora e escravocrata da Europa, mas com um texto pobre acabam sendo sugados por tudo o que acontece ao redor e, até mesmo, o romance criado entre um deles e uma Agojie não agrega em nada.

A Mulher Rei é um filme épico e que só percebemos a sua urgente necessidade depois que o assistimos. O viés e o olhar afetuoso de Bythewood para esta história e para essas mulheres é cativante. O filme emociona, nos leva a sentimentos de tensão, mas finaliza com uma mensagem de esperança não só pelo desfecho da história mas também para como o cinema precisa mudar sua forma de enxergar suas produções. Gina Prince-Bythewood, Viola Davis e Cia. estão dizendo em letras garrafais que estamos cansados de filmes de brancos feitos por brancos. O mundo, refletido também no cinema, precisa, necessita de diversidade e representatividade.


Filme: The Woman King (A Mulher Rei)
Elenco: Viola Davis, Thuso Mbedu, Lashana Lynch, Sheila Atim, John Boyega, Jayme Lawson, Jordan Bolger, Jimmy Odukoya
Direção: Gina Prince-Bythewood
Roteiro: Dana Stevens e Maria Bello
Produção: Estados Unidos, Canadá
Ano: 2022
Gênero: Ação, Drama, História
Sinopse: A Mulher Rei é uma história memorável da Agojie, uma unidade de guerreiras composta apenas por mulheres que protegiam o reino africano de Daomé nos anos 1800, com habilidades e uma força diferentes de tudo já visto. Inspirado em eventos reais, A Mulher Rei acompanha a emocionante jornada épica da General Nanisca (Viola Davis) enquanto ela treina uma nova geração de recrutas e as prepara para a batalha contra um inimigo determinado a destruir o modo de vida delas
Classificação: 16 anos
Distribuidor: Sony Pictures
Streaming: Indisponível
Nota: 8,4

*Estreia dia 22 de setembro de 2022 nos cinemas*

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