O filme “Aquarius”, com direção e roteiro de Kleber Mendonça Filho e estrelado pela consagrada atriz Sônia Braga, estreou nos cinemas em 2016. Nesse mesmo ano, sua estreia foi marcada por uma grande polêmica no Festival de Cannes: a equipe do filme aproveitou a visibilidade dos holofotes do tapete vermelho para denunciar ao mundo o processo de impeachment da então presidente brasileira Dilma Rousseff, o qual consideravam um golpe de Estado. A grande divulgação dessas manifestações, feita pela imprensa e presente nas redes sociais, refletiu diretamente no público-alvo e na quantidade de pessoas nas salas de cinema. Desde então, em conjunto com o afastamento da presidente, o filme se tornou um ato de resistência para uns – e, para outros, de certo oportunismo. Com isso, as salas de cinema foram lotadas de partidários da ideia do golpe e o filme sofreu uma tentativa de boicote por quem apoiou o processo de impeachment. Aquarius: um filme-manifesto contemporâneo
A narrativa do filme se concentra na trajetória de Clara, que resiste às investidas de uma construtora interessada em demolir o pequeno edifício em que sempre viveu, o edifício Aquarius, para construir um centro de empreendimento imobiliário. A construtora já adquiriu todos os outros apartamentos do prédio, localizado na praia de Boa Viagem, em Recife, e faz de tudo para tentar convencer a heroína a vender o imóvel, viabilizando a obra do novo empreendimento. Dessa forma, para além do evidente debate acerca do poder do mercado imobiliário nas cidades brasileiras, o filme retrata a ideia de lar, de pertencimento e preservação da memória.
A ideia de lugar é configurada como uma relação de intimidade e afetividade entre a natureza humana, sua cultura e suas vivências. A memória, por sua vez, surge como um elemento unificador entre o simbolismo e o palpável da interpretação individual. O filme, por exemplo, une essas ideias ao relacionar-se diretamente com as experiências dos espectadores. Ao apresentar como pano de fundo a expansão imobiliária na região, o processo de verticalização e a consequente incapacidade de respeitar individualidades e liberdades da protagonista, o filme traz à tona um diálogo com um possível rompimento de um laço de pertencimento. Assim, há uma resistência representada pela personagem Clara em seu contexto específico, que ultrapassa a história contada e observada pelos espectadores em seus contextos distintos.
O filme começa com imagens antigas da orla de Boa Viagem, remetendo às décadas de 1970 e 1980. Uma das primeiras cenas mostra Clara indo para a festa de aniversário de 70 anos de sua tia. Suas memórias são relembradas a partir da presença de um móvel na sala que, durante o aniversário da tia, faz com que ela relembre sua juventude com seu marido, em cenas de intimidade em que o objeto se fazia presente. A música de parabéns é tocada em um piano que, assim como o móvel citado, faz-se presente ao longo dos anos. A grande importância do lugar para as relações também é expressa no discurso de aniversário feito pela filha de Clara, para a tia da sua mãe, no qual relembra momentos da infância em diferentes cenários. Assim, percebe-se o local funcionando como um centro de ações de afetividade relacionando diferentes gerações da família na produção de memórias individuais e coletivas.
Para Clara, perder o apartamento é perder uma parte de si mesma. Sua resistência acaba sendo contra a destruição do seu passado em prol da construção do seu futuro, sendo uma relação ignorada pelos responsáveis pelas transformações no espaço urbano. A especulação imobiliária e suas consequências no espaço estão conectadas com fluxos globais de investimentos financeiros, que padronizam modos de viver sem preocupação com a autenticidade e respeito aos indivíduos e suas relações com seus lugares. E é exatamente isso que faz a personagem ser mais persistente em sua decisão: o nome inicial do empreendimento seria “Atlantic Plaza Residence” e, posteriormente, foi mudado para “Novo Aquarius” com o intuito de preservar a memória do edifício anterior. Mas que memória? Essa seria mais uma tentativa de dominação a partir de discursos vazios de sentido, com um claro objetivo de encobrir uma realidade sem sinceridade.
Em uma cena em que caminha pela praia, Clara explica para seu sobrinho a divisão entre a parte rica e a pobre pelo caminho de areia de Boa Viagem. A parte mais rica seria o bairro de Pina, onde ela mora, e a mais pobre seria Brasília Teimosa. Ela demonstra essa divisão ao apontar para um cano que jorra esgoto sem tratamento pela areia e vai em direção ao mar, dizendo se tratar da divisão entre esses dois bairros. Com isso, é possível compreender que a especulação imobiliária que está expulsando Clara de seu lugar não só destrói memórias, mas também produz problemas urbanos e sociais que afetam diretamente os moradores de Recife. A verticalização se traduz como fruto de um capitalismo urbano e global que cresce sem atentar a certas especificidades locais. E se isso ocorre é porque há uma gestão política que permite que a especulação do setor imobiliário cause transformações territoriais.
Naturalmente, a própria aceitação desse fenômeno por parte da população pode ser entendida como efeito de um discurso de dominação que utiliza a tecnologia e as inovações como forma de auxiliarem a transformação estrutural das sociedades transmitindo a ideia de que o que é passado é ultrapassado. Essa ideia hierárquica é, inclusive, veladamente exercida pela protagonista com sua funcionária Ladjane, por exemplo, que é “quase da família”. Clara é uma patroa gentil, moderna, praticamente uma “amiga”. Em um determinado momento do filme, ela participa da festa de aniversário de Ladjane na laje de sua casa em Brasília Teimosa, a poucos metros da praia de Boa Viagem. Toda essa cena expõe os contrários em que a sociedade brasileira se constrói, entre Clara e Ladjane, entre Pina e a comunidade Brasília Teimosa, divididas pela praia de Boa Viagem. É a expressão de uma sociedade permeada por valores que oscilam entre a opressão e o carinho, sem deixar de lado o monopólio estrutural e elitista.
Mesmo que a trama tenha um desfecho aberto, entendemos como um desfecho feliz. Todavia, esse desfecho está longe de realmente ser concretizado, já que o filme demonstra esse contexto de dominação presente na sociedade brasileira. Ética e socialmente, nunca saímos de um sistema de bases oligárquicas, com o poder nas mãos de pequenos grupos social e economicamente dominantes. A destruição do edifício Aquarius seria mais uma vitória desse sistema opressor. Clara, mesmo que inconscientemente, é uma peça que contribui para a manutenção desse ciclo. Os direitos de pertencimento e, principalmente, de permanência são trabalhados como resistência nessa obra contemporânea. O filme constrói um discurso de luta por direitos individuais que vão de encontro a uma gestão autoritária, combatendo o poder da especulação imobiliária e de grandes corporações.
Era um caminho quase que natural que o filme se tornasse tão simbólico e servisse de metáfora para o momento atual do país. Os recursos primordiais que fizeram a produção ser um símbolo contra o então presidente Michel Temer não foram os cartazes contra o impeachment de Dilma Rousseff no Festival de Cannes. O filme, através de nossos sentidos, transpassou sua narrativa e levou a uma interpretação direta por quem pôde assisti-lo nas salas de cinema, que puderam enxergá-lo mesmo em seus diferentes contextos e com suas distintas ideias de lugar. No conflituoso momento político do país, ele teve a possibilidade de se tornar um filme-manifesto na luta de direitos, sejam eles quais fossem, em alguma instância. A sua narrativa e construção funcionaram como um contradiscurso dominante unificando uma quase contracultura ao representar a batalha por direitos, que, certamente, é uma guerra que todos encaram contra qualquer tipo de dominação existente, em algum momento.