Em uma paisagem remota no campo italiano, num casarão em ruínas, vive uma grande família de trabalhadores rurais. Essa família tradicional, formada por pai, mãe, quatro filhas e uma prima subsiste da produção de tudo um pouco e principalmente da venda do mel, seu produto mais estimado. No centro dessa família, encabeçando as decisões e lidando com o trabalho pesado e suas burocracias, está Gelsomina, encantadora de abelhas, filha mais velha e chefe da casa. Assim se apresentam os personagens de As maravilhas (Le meraviglie), filme de 2014 escrito e dirigido por Alice Rohrwacher.
Logo nas cenas iniciais, quando conhecemos a família de Gelsomina, somos surpreendidos com uma dinâmica familiar no mínimo estranha, quando a cineasta escolhe começar sua narrativa com uma cena em que uma das crianças quer ir ao banheiro e toda a família a acompanha e a assiste fazendo o que tem que fazer. Essa cena serve como uma espécie de alerta, um termômetro do que está por vir, do tipo “assista se estiver de acordo com o que está sendo apresentado aqui”. A estranheza da produção de Rohrwacher está ali, desde o início e até o fim.
A narrativa de As maravilhas, que está centrada em Gelsomina, introduz aos poucos um dilema que ocorre à essa personagem: ao mesmo tempo em que ela vive o início de sua adolescência, precisa também cuidar de sua casa e de seus parentes. Em um momento em que se pode, despreocupadamente, desfrutar de uma existência onde não se é nem criança e nem adulta, Gelsomina precisa, unilateralmente, agir como uma adulta, trabalhar pesado e cuidar das abelhas com seu pai rude e de temperamento difícil. Essa relação entre filha e pai é o tema mais explorado do filme, constituindo um dos arcos mais importantes da história.
A atmosfera das cenas entre estes dois personagens se mostra quase sempre tensa, pois não se sabe o que esperar do único homem presente no ambiente. Dotado de uma masculinidade frágil, mascarada por uma falsa virilidade, o pai é uma pessoa instável, que está sempre na linha tênue entre uma ser amoroso e gritar com sua filha mais velha – e com qualquer um que aparecer em sua frente –, que reage a esse condicionamento o odiando e buscando, de alguma forma, sua aprovação, muito por conta do medo que este imprime na jovem menina. Essa estranha relação passa a mudar quando o pai acolhe, a partir de uma espécie de “serviço” social um pequeno criminoso em troca de uma quantia em dinheiro.
É curioso como estamos condicionados a procurar algum tipo de romance ao assistir um filme. A chegada desse jovem rapaz nos leva a quase crer que um amor juvenil está para acontecer, porém, a relação entre Martin e Gelsomina vai muito além do clichê adolescente a que estamos habituados. Para falar a verdade, clichê não é algo a ser encontrado por aqui. Muitas vezes nesse filme, não é possível saber o que nos espera na cena seguinte e isso não é uma característica ruim do trabalho de Alice Rohrwacher. A estranheza de sua criação nos salta aos olhos, mas de alguma forma esse estranho se mostra acolhedor e de uma beleza única.
Uma virada importante se dá quando Gelsomina descobre um concurso promovido pela TV onde se julgam as produções das famílias “etruscas” e se valoriza o tradicional na forma de fazer agricultura, o concurso é chamado de “Aldeia das maravilhas” e é daí que provém o título do filme. A protagonista, que fica de certa forma obcecada com tal concurso, luta até o último minuto para que sua família participe, indo de encontro com a personalidade raivosa de seu pai e colocando em risco o trabalho de sua família, que não opera dentro de todos os padrões de segurança necessários em uma produção. O sonho de uma vida melhor e mais “normal” aos olhos de Gelsomina se encontra nessa competição e seu destino depende disso.
Ao longo dos dias precedentes ao concurso, assistimos aos eventos habituais e desgastantes da vida dos trabalhadores do campo. Em um espaço de poucos dias, vemos picadas de abelhas e cortes nas mãos de pequenas pessoas ao mesmo tempo em que também as vemos brincando e nadando no mar. A dualidade desses eventos não parece afetar a todos os outros, porém a protagonista, ainda que com sua inocência ainda infantil, se mostra cada vez mais infeliz com o caminho que trilha forçadamente.
No entrelugar dessas pequenas situações cotidianas, Rorhwacher escolhe não nos mostrar a relação iniciada entre Gelsomina e Martin. O jovem rapaz alemão, que pouco fala do italiano, se comunica com olhares e as vezes com assobios. Extremamente fechado, esse garoto, “acolhido” para ser também um trabalhador, possui o mesmo olhar de Gelsomina e, naquilo que não nos é apresentado, sua relação flui para um resultado que muito provavelmente não estávamos esperando.
São nos minutos finais que conseguimos enxergar a força da protagonista de As maravilhas. Em uma atmosfera semelhante a de um sonho vemos o plano de Gelsomina e Martin se concluir e a beleza das ações dos jovens atores se mistura à beleza da paisagem solar italiana. O título do filme, que pode se mostrar irônico, está contido na trajetória destes personagens. Em um final longe dos clichês hollywoodianos a que estamos habituados, enquanto Gelsomina narra os minutos finais de sua história, podemos sentir que as maravilhas sempre estiveram ali, de um jeito torto e não exatamente “ideal”, mas ali, para vermos e sentirmos.
Filme: As maravilhas (Le meraviglie) Elenco: Maria Alexandra, Alba Rohrwacher, Sam Louwyck, Agnese Graziani, Luís Huilca Direção: Alice Rohrwacher Roteiro: Alice Rohrwacher Produção: Alemanha, Itália, Suíça Ano: 2014 Gênero: Drama Sinopse: Numa aldeia da Úmbria, é o fim do verão. Gelsomina vive com os pais e as três irmãs, numa quinta desmoronada onde produzem mel. As meninas são voluntariamente afastadas da realidade pelo pai, que prediz o fim do mundo e defende uma relação privilegiada com a natureza. No entanto, as regras rigorosas da família vão ser transtornadas com a chegada de Martin, um jovem delinquente acolhido no âmbito de um programa de reinserção, e pela rodagem de “Aldeia das Maravilhas”, um jogo televisivo que invade a região. Classificação: 12 anos Distribuidor: Alpha Filmes/Pandora Filmes Streaming: Looke Nota: 7,5 |
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