CRÍTICA – BATEM À PORTA

CRÍTICA – BATEM À PORTA

Dificilmente saímos indiferentes de um filme de M.N. Shyamalan, e Batem à Porta não é uma exceção. O indiano é um artista inegavelmente diferenciado em seu contexto hollywoodiano, sabendo dialogar com as massas enquanto manipula, como poucos, convenções mais tradicionais de gênero. Passado o seu ápice entre O Sexto Sentido e Sinais, porém, o cineasta passou a ser questionado enquanto autor, trazendo vários filmes divisivos em opinião, o que o levou a cair em algumas rotulações um tanto injustas. Por exemplo, passaram a reduzir seus filmes ao valor das reviravoltas e/ou surpresas nas histórias, sendo que a graça de sua filmografia é ver como ele consegue articular narrativas envolventes através da dubiedade do homem com a fé e o sobrenatural; como eles podem ser transformadores de valores.

Shyamalan nunca escondeu de ninguém sua doutrina católica, e a cada filme é perceptível o quanto ele faz um apelo catequético ao público para a crença no metafísico e no extraordinário entre os humanos. Mas fato é que o diretor com o tempo perdeu a sutileza no tratamento dessa sua principal pauta, que anteriormente, em seu auge, era tratada com maior ambiguidade para subverter características de tipos de filme específicos – o terror sobrenatural nunca mais foi o mesmo depois que Shyamalan disse que fantasmas são assustadores, mas talvez sejam inofensivos. Em minha teoria, esse discurso mais direto em seus roteiros foi o que o distanciou da unanimidade que era no ápice da carreira. Ao menos, depois de A Visita, o cineasta passou a saber lidar melhor com essa frontalidade, até por convertê-la em exercícios dinâmicos e objetivos em seus gêneros de conforto na modernidade.

Batem à Porta é o ápice dessa nova maturidade adquirida pelo cineasta, não mais tão interessado em investir na construção de possíveis fatores-surpresa da história – embora ainda seja muito perspicaz em segurar alguns mistérios da premisa com inteligência -, e sim na potência dramática do discurso em um confronto direto do dilema moral apresentado com a crença do público. Não obstante, o filme não perde tempo em nos jogar diretamente na situação de tensão, ainda por cima dando uma paleta bem evidente dos simbolismos bíblicos envoltos na narrativa no diálogo inicial, filmado entre trocas simples de plano e contra plano. 

O quarteto liderado por Leonard (Dave Bautista) impõe ao casal gay Eric (Jonathan Groff) e Andrew (Ben Aldridge) e a sua filha Wen (Kristen Cui) que o apocalipse está chegando e que eles precisam sacrificar um deles para impedir, como uma verdade imutável. Por mais que haja alguns diálogos em contrapartida da família não tradicional tentando convencê-los de que estão errados, além da escolha de um cenário isolado do tal apocalipse para conservar minimamente a dúvida, Shyamalan cria evidências por imagens específicas que não deixam dúvidas de que os invasores não estão blefando. Considerando esses elementos escancarados rapidamente, a narrativa de Batem à Porta se torna “telegrafada” propositadamente muito cedo, para que a tensão construa muito mais a partir da reflexão sobre a decisão altruísta a ser ou não tomada. E percebam que até mesmo surge com uma inclinação certa para um lado: o lógico, o racional.

Pela razão, Shyamalan acredita que o público, representado por aqueles personagens, em primeira instância buscaria a sobrevivência individual, o que por consequência, faz com que o exercício mais puro do gênero “terror de invasão domiciliar” funcione bastante para nos manter entretidos e vidrados durante os dois primeiros atos. A subversão ao tradicional desse tipo de narrativa (que, na prática, não existe, uma vez que o próprio Shyamalan esconde a violência no filme, pois seu intuito não é chocar o público, deixá-lo com medo do que os desconhecidos podem fazer aos personagens) vem conforme o poder de convencimento do discurso dos invasores para os sobreviventes, logo, do diretor para o público, o que naturalmente conversa com as revelações alegóricas verbalizadas perto do fim, tornando-as menos revelações e mais contextos que amplificam a complexidade da dramaturgia.

É o que acontece com certas informações jogadas pelos personagens invasores aparentemente arbitrárias, e com a presença de flashbacks pontuais de momentos arbitrários de Eric e Andrew antes de estarem naquela situação. Eles até têm uma aura misteriosa, trazem a dúvida se o background que os invasores estão contando é verdade ou mentira – Dave Bautista é uma ótima escalação/atuação para que Shyamalan transite entre o tom ameaçador e o ingênuo da obra -, e nos deixam curiosos para saber como esses flashbacks se ligarão diretamente com o presente – vibes Lost -, mas, no fundo, Shyamalan posiciona essas informações como ingredientes contextualizadores e complexadores do drama em destaque, não para o suspense.

Basicamente é o retorno da sutileza da sua mão como diretor, só que fora de um terreno ambíguo, e sim direto ao ponto, por mais que ele demore a ser totalmente direto para que haja graça no suspense. Pensando por esse lado, fazia tempo que o Shyamalan não era tão convicto na execução de suas ideias, o que também traz um lado ruim, visto que o impede de ter uma finalização mais corajosa e impactante, como clama o desfecho cenográfico da derradeira escolha. Um reflexo ainda dessa preocupação do diretor com essa relação de amor e ódio criada com o seu público, que lhe cria uma necessidade de deixar tudo o mais mastigado possível. 

Definitivamente, seus recentes finais têm se estendido além do necessário, mas, nesse caso, não chega a ser um agravante negativo, pensando que o epílogo entregue também sirva (assim como os flashbacks) como complemento sutil e embelezante ao contexto temático debatido. Embora não traga nenhum debate que já não tenha sido desenvolvido em sua filmografia, nem apresente aquela genialidade unânime e uniforme que teve em algum momento – é um filme tão divisivo quanto todos os outros pós-Sinais – para cravar que ele realmente “voltou” (sendo que nunca foi, ele fez bons/ótimos filmes nesse meio-tempo), diria que Batem à Porta é, no mínimo, o seu trabalho mais equilibrado e envolvente (no sentido mais cru da palavra) dentre os não unânimes.


Filme: Knock at the Cabin (Batem à porta)
Elenco: Jonathan Groff, Ben Aldridge, Kristen Cui, Dave Bautista, Rupert Grint, Nikki Amuka-Bird, Abby Quinn, William Ragsdale
Direção: M. Night Shyamalan
Roteiro: M. Night Shyamalan, Paul Tremblay, Michael Sherman, Steve Desmond
Produção: Estados Unidos, China
Ano: 2023
Gênero: Suspense, Drama, Terror
Sinopse: Durante as férias em uma cabana remota, uma jovem e seus pais são feitos reféns por quatro estranhos armados que exigem que a família faça uma escolha impensável para evitar o apocalipse. Com acesso limitado ao mundo exterior, a família deve decidir no que acredita antes que tudo esteja perdido.
Classificação: 16 anos
Distribuição: Universal Pictures
Streaming: Indisponível
Nota: 8,0

 

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